Ao contrário dos
tempos iniciais de crise econômica internacional, o Brasil já não trata mais a
atual conjuntura como mera “marola” e se conforma em se esforçar para manter
modestos índices de crescimento. Nesse sentido, o governo tomou diversas
medidas de incentivo ao investimento empresarial, especialmente através da
desoneração da folha de pagamento em cerca de 40 setores, medida que Guido
Mantega considera “liberar geral” a partir de 2013.
Para tratar do
assunto através da perspectiva da classe trabalhadora, que não tem garantida
estabilidade alguma, o Correio da Cidadania entrevistou o advogado e assessor
sindical Jorge Luís Martins, para quem a atual onda de desregulamentação
trabalhista é puxada pela China e sua obsessão pelos índices de produtividade
de que tanto necessita.
Além disso,
Jorginho, como é conhecido o ex-membro da CUT, explica que o empresariado conta
com todo o apoio do governo no sentido de retirar direitos e baratear custos.
Basta conferir os projetos que o Planalto pretende levar adiante através de
leis mais duras em relação ao direito de greve, às negociações trabalhistas e à
regulamentação oficial das terceirizações, inclusive de atividades-fim da
empresa.
“O que se pretende
de fato com a anunciada regulamentação é acabar com o direito de greve. Governo
e empresários pretendem criar tantos empecilhos e cláusulas proibitivas para se
fazer uma greve que, na prática, acabam com o direito, a exemplo do último
anúncio de greve dos metroviários de São Paulo”.
No geral, Jorginho
traça um quadro negativo para a classe trabalhadora, desde sua instância mais
organizada, os sindicatos, que estabeleceram uma “paz de cemitérios”, aos
trabalhadores mais precarizados, ainda contumazes vítimas de trabalho escravo,
para ele tratado pelo governo com muito pouco rigor. Além disso, o mesmo
tenderá a se refletir na previdência, sempre desviada de sua finalidade e
utilizada pelos distintos governos como “caixa comum”.
A entrevista
completa pode ser lida a seguir.
Correio da
Cidadania: Ao longo do ano, foi tomada uma série de medidas, pouco ecoadas e
debatidas, em torno aos direitos sociais e trabalhistas. Nos últimos meses
voltaram a circular notícias específicas ligadas ao mundo do trabalho. Como tem
enxergado, no geral, o campo do trabalho, os direitos sociais e as discussões
em torno da legislação trabalhista neste ano, sob o governo Dilma?
Jorge Luís
Martins: Nas duas últimas
décadas, a pressão acerca de alterações da legislação trabalhista tem
aumentado. Um dos principais fatores é a pressão que a China exerce no sentido
de barateamento dos custos da produção e do altíssimo índice de produtividade.
Naquele país,
vigora uma brutal desregulamentação das condições de trabalho, que torna a mão
de obra algo impressionantemente precária, haja vista os sucessivos acidentes
nas minas de carvão e as denúncias de trabalho infantil e utilização de
trabalho de presos.
Correio da
Cidadania: Algo marcante em 2012 neste campo foi a desoneração da folha de
pagamentos em 20% para até 40 setores da economia nacional, sob alegação de
combate à crise internacional e manutenção dos índices de atividade econômica
do país dentro das metas oficiais. Qual é, a seu ver, o impacto social desta
medida?
Jorge Luís
Martins: Evidentemente que a
crise internacional é um ingrediente a mais no debate, mas é importante
ressaltar que o empresariado brasileiro já usa e abusa da “teoria” do “custo
Brasil”, com a qual tenta atribuir os custos da produção no Brasil aos
direitos, mínimos, expressos na CLT e a outros adquiridos na Reforma
Constitucional de 1988. Porém, o problema é muito mais relativo ao atraso
tecnológico do país, bem como ao débil sistema de ensino público.
Além do mais, os
empresários partem da falsa premissa de que pagam elevadas taxas de impostos, o
que na verdade não se sustenta em relação aos países desenvolvidos. Assim, o
governo, ao desonerar os empresários de pagamento de impostos, na realidade
joga ainda mais precariedade nos serviços públicos e nas obrigações do Estado,
com a diminuição dos investimentos, em especial nas áreas de educação e saúde.
Correio da
Cidadania: Pensando em outros casos específicos, o Acordo Coletivo Especial de
Trabalho está em debate no Congresso e traz de volta a ideia de fazer
prevalecer o negociado entre patrões e empregados sobre direitos já assegurados
em lei. O que pensa disso?
Jorge Luís
Martins: Este debate não é novo,
pois desde o governo de FHC, e depois o de Lula, se buscou construir um acordo
para uma Reforma Sindical e Trabalhista. Com o argumento da necessidade de
alterar a CLT, colocaram-se a lógica e concepção de “liberdade de negociação”,
ou seja, o que for negociado prevalecerá sobre a Constituição. Se aprovado este
modelo, será a barbárie sobre os poucos direitos conquistados, pois o patronato
não hesitará em chantagear os trabalhadores para acabar com o direito de
férias, 13º, FGTS, dentre outros, com um simples argumento: “ou reduzo meu
custo cortando direitos através de um acordo especial, ou terei que demitir”.
Importante ressaltar que, neste caso, o fato é ainda mais grave, pois, se um
sindicato se recusar a assinar, poderá a Federação, Confederação ou ainda uma
Comissão de Trabalhadores, em última instância, fazer o malfadado acordo.
Correio da
Cidadania: Está ainda em discussão na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados projeto que regulamenta a terceirização
no Brasil em todos os tipos de atividades dentro de uma empresa, não só naquelas
acessórias, como limpeza e segurança, mas também as próprias atividades-fim
(hoje, terceirização de atividades-fim não é permitida pela lei). Neste caso, o
que pode resultar, a seu ver?
Jorge Luís
Martins: Ao contrário da alegação
dos empresários, o trabalho no Brasil já é demasiadamente desregulamentado,
haja vista que mais de 40% da mão de obra não tem registro em carteira, para
não falar de trabalho informal, infantil e escravo, que ainda existem até hoje.
Assim, a terceirização de atividades “fim” será mais um golpe no sentido de
driblar a legislação, transferindo a produção para empresas terceirizadas, que
em geral desrespeitam as normas de jornada de trabalho, segurança e medicina,
ou seja, condições básicas. Tudo isto para baratear os custos da produção e
manter a lucratividade e a competitividade das empresas.
Correio da
Cidadania: Algo que também está no ar é a nova proposta de Dilma para a Lei de
Greve do Setor Público, antes que fosse regulamentada a Convenção 151 da OIT
que regulamenta as negociações coletivas. Como está esta discussão e qual a sua
opinião?
Jorge Luís
Martins: A Constituição Federal
de 1988 garantiu aos servidores o direito à organização sindical, mas ao mesmo
tempo não regulamentou o direito à negociação. Assim, os servidores ficam à
mercê dos governos (federal, estadual ou municipal) de plantão, que não cumprem
acordos e não garantem anualmente sequer as correções salariais necessárias
para repor as perdas - a exemplo dos tempos de FHC, quando os servidores
passaram oito anos com 0% de reajuste e permanecem em sua ampla maioria sem um
plano de carreira decente.
Correio da
Cidadania: Esse projeto do governo guarda relação com a recente greve dos
servidores federais, a maior dos últimos 10 anos e que teve alta resistência
oficial às negociações?
Jorge Luís
Martins: Os trabalhadores
brasileiros estão prestes a sofrer uma derrota histórica, ou seja, a
regulamentação (ou fim, na prática) do direito de greve dos servidores e ainda
a noticiada regulamentação de greve dos chamados “setores essenciais”. O que se
pretende de fato com a anunciada regulamentação é acabar com o direito de
greve. Governo e empresários pretendem criar tantos empecilhos e cláusulas
proibitivas para se fazer uma greve que, na prática, acabam com o direito. Um
exemplo é o último anúncio de greve dos metroviários de São Paulo, em que a
Justiça, em liminar, antes mesmo do início do movimento, determinou que 90% dos
funcionários do metrô deveriam trabalhar, sob pena de multas diárias de alguns
milhares de reais.
Correio da
Cidadania: O que pensa a respeito da sofreguidão com que avança a PEC 438, que
visa combater e eliminar o trabalho escravo, ainda em franca e subestimada
vigência?
Jorge Luís
Martins: O trabalho escravo no
Brasil, embora seja considerado crime, na prática não leva nenhum empresário
para a prisão, da mesma forma que o trabalho infantil. Um câncer de um modelo
de desenvolvimento que não tem nenhuma preocupação pela dignidade humana.
Assim, enquanto não se impuser uma legislação para expropriar as terras e
empresas que utilizam o trabalho escravo, nenhuma lei por si só será cumprida,
pois a tradição demonstra que o capitalismo selvagem só se movimenta na medida
em que decisões, políticas e jurídicas, afetem seu patrimônio.
Ao que tudo indica,
no entanto, os governantes e o Poder Judiciário ainda fazem vista grossa e
acreditam ser possível alterar esta situação de calamidade com conversa fiada -
ou seja, somente através da criação de factóides, a cada descoberta de trabalho
escravo, que são esquecidos na semana seguinte, com novos fatos e escândalos de
toda ordem.
Correio da
Cidadania: Agora, ao final do ano, existe a perspectiva de fim do fator
previdenciário. O que pensa de seu eventual fim?
Jorge Luís
Martins: Na realidade, o fator previdenciário,
com a alteração da concepção da garantia por tempo de serviço para tempo de
contribuição, foi introduzido por FHC e mantido por Lula e Dilma
desavergonhadamente. Os sucessivos governos fizeram dos fundos da previdência
pública um “caixa comum”, possibilitando aos governos utilizarem o dinheiro das
previdências em qualquer área, através da DRU (Desvinculação das Receitas da
União). Com este mecanismo, a União vale-se de manobra anômala para minguar a
afetação dos recursos públicos e obter a livre alocação de receitas à
revelia dos preceitos constitucionais.
Correio da
Cidadania: Como analisa a atual situação e também atuação dos órgãos públicos
ligados à proteção do mundo do trabalho, começando pelo próprio Ministério do
Trabalho e Emprego?
Jorge Luís
Martins: O Ministério do Trabalho
e Emprego (MTE) tem uma estrutura arcaica, precária e tem pouquíssimo poder de
fazer cumprir qualquer norma, quer seja em relação às condições de trabalho,
quer seja em relação ao descumprimento dos direitos constitucionais. Ao longo
do tempo, tem virado um “cabidão de emprego” para alojar os partidos da base do
governo. Sem concurso público decente há anos, o MTE vive a situação de ver seu
quadro de funcionários envelhecer. Fazer alterações para fortalecer o órgão vai
na contramão dos objetivos do empresariado e do próprio governo de
desregulamentar o direito do trabalho no Brasil
Correio da
Cidadania: O que dizer do atual nível de auto-organização e atuação política do
mundo do trabalho? Quais as perspectivas que se colocam para o avanço da
consciência de classe e uma maior conexão das lutas entre os vários
trabalhadores?
Jorge Luís
Martins: Dificílimas, pois no
final dos anos 70 surgiu a CUT, com a proposta de lutar contra a estrutura
sindical no Brasil, mas, ao longo do tempo, a CUT se adaptou e hoje convive
tranquilamente com o sistema e os governos, desfrutando do dinheiro do imposto
sindical e de bilhões do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para a realização
de “cursos profissionalizantes”.
Da mesma forma, a
CUT não mais questiona o poder normativo da Justiça do Trabalho, que a cada dia
amplia suas decisões de liminares e interditos proibitórios, com pesadas multas
contra as entidades sindicais. E ainda deixou de lutar pela liberdade de
organização sindical.
A ampla maioria
dos sindicatos hoje é de meros carimbadores, garantidos graças ao monopólio de
representação. Assim, estabeleceu-se ao longo dessas últimas duas décadas um
pacto de “paz dos cemitérios”. Embora os trabalhadores continuem a ter sua
situação econômica e suas condições de trabalho mais precarizadas, cada uma das
centrais “cuida de seu pedaço” e ninguém briga com ninguém.
Correio da
Cidadania: Faria alguma diferenciação entre as posturas de Dilma e Lula no que
se refere aos temas aqui tratados?
Jorge Luís
Martins: Lula prestou um grande
desserviço aos trabalhadores ao declarar que “dias em greve deveriam ser
descontados”, isso sem levar em conta a razão pela qual os trabalhadores estão
em greve. E ainda alimentou as bases da desregulamentação do mercado de
trabalho. Por outro lado, Dilma tem sido mais sofisticada: depois de defender a
substituição de trabalhadores federais em greve por outros servidores do
Estado, descontou os dias de greve, mas forçou acordos para devolução dos descontos,
com o retorno dos mesmos ao trabalho. Assim, cumpre os pressupostos do chefe e
aprimora no “bate e assopra”. Aos poucos, vai minando o direito de greve e
introduzindo novos mecanismos de pressão e chantagem contra a classe
trabalhadora.
Valéria Nader,
economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é
jornalista do Correio da Cidadania.
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