Escrito por
Valéria Nader, da redação – colaborou Gabriel Brito – Sexta, 21 de Dezembro de
2012.
Mensalão e eleição
serão, inegavelmente, marcas registradas do ano de 2012. Daquelas que vêm
primeiro à mente ou aparecem de maneira mais imediata ao senso comum. O
primeiro, no entanto, passado o momento de arrebatamento inicial, repleto de
rompantes e querelas políticas, ficará para a história como mais do mesmo da
política nacional, com a sua equalização por baixo a partir do vale-tudo
institucional. E as últimas eleições municipais tampouco serão capazes de se
registrarem mais qualificadamente na memória coletiva, vez que, no geral, não
chegaram a modificar de modo substancial a atual composição de forças
dominantes.
Na economia
mundial, a desaceleração voltou a mostrar força retumbante em 2012, mais
notadamente no continente europeu, às voltas com as imposições barbarizantes da
chamada Troika. Um processo que, ressalte-se, já vem se delineando bem antes da
explosão da crise financeira internacional de 2008, e que não chega a ser
surpreendente para quem acompanha o desenrolar da vertente econômica dominante
– norteada pela satisfação dos interesses do capital financeiro e das grandes
corporações internacionais.
Se o Brasil pôde,
por um bom tempo, passar relativamente incólume à degringolada do capitalismo
mundial, em especial em sua vertente neoliberal, não foi bem assim em 2012.
Estaria aqui uma das novidades do ano que finda? Sim, mas somente para aqueles
que têm carregado a imagem do Brasil como uma das ‘meninas dos olhos do capital
financeiro’ e que se iludem com a noção de que o país ascendeu socialmente,
agora que a classe média comporia uma boa parte da população. Aos olhos de quem
se atenta para as frágeis bases em que está assentado o modelo econômico
interno, fortemente calcado no consumo de supérfluos, no endividamento familiar
e, portanto, em uma expansão insustentável do crédito, não há como não antever que,
cedo ou tarde, a barbárie vai se instalar em solo pátrio.
Movimentações e
protestos mundiais em reação à forte crise externa e, especialmente, às medidas
fiscais restritivas e pauperizantes que vêm sendo impostas têm se alastrado por
vários países. E no Brasil, não foi diferente. É certo que, neste ano, houve um
forte recrudescimento da reação popular aos atropelos dos direitos das
populações urbanas vulneráveis e também às agressões aos povos originários. Os
movimentos sindicais mais organizados também irromperam na arena política
exigindo, dentre outros, a recomposição de rendimentos há longos anos
defasados, em função da negligência dos governos com os setores e o
funcionalismo público.
Toda esta
movimentação é, sem dúvida, indicativa da agudização da percepção das mazelas e
contradições no seio da sociedade, e de que possam começar a se mover alguns
dos arraigados e retrógrados alicerces sociais. Trata-se, de todo modo, de uma
movimentação ainda incipiente, carente de amplitude e organicidade. E tão ou
mais essencial que este caráter incipiente, e a ele associada, esta reação tem
sido respondida a partir da lógica vigente em nossa economia e sociedade, qual
seja, a lógica de governos submissos aos interesses econômicos e financeiros. A
repressão e a violência policial têm aparecido, assim, notoriamente como a
resposta mais imediata aos grupos que se organizam na defesa de seus
interesses.
Com esta visão em
mente, o sociólogo do Trabalho e professor do departamento de
Sociologia da USP, Ruy Braga, é o nosso entrevistado especial neste final
de ano. Seus estudos, assim como seu mais recente livro, ‘A política do
Precariado’ – do populismo à hegemonia lulista, são emblemáticos em meio a
este cenário, visto lançarem sobre ele um profundo e sensível olhar.
Um dos destacados
registros de seu último livro diz respeito ao processo de concessões reais que
embasam aquela que é chamada de ‘hegemonia lulista’, basicamente calcada em um
consentimento passivo das bases sociais e em um consentimento ativo por parte
das direções sindicais. Neste sentido, o sociólogo ressalta que “as condições
de vida e inserção da classe trabalhadora nas cidades e locais de trabalho são
muito precárias. A despeito do que ocorreu no mercado de consumo, por conta da
relativa desconcentração de renda, as condições de vida são muito limitadas, o
que não tem mudado significativamente. Em alguns casos tem piorado, e muito.
Portanto, temos um aumento de consumo e, ao mesmo tempo, condições de vida e
trabalho muito degradantes”.
Leia a seguir a
entrevista completa.
Correio da
Cidadania: A ideia do ‘precariado’ é um dos temas de análise de seu último
livro ‘A política do Precariado’ – do populismo à hegemonia lulista. O
que você destacaria como essencial na apreensão deste conceito e o que o
motivou a desenvolvê-lo?
Ruy Braga: O conceito sociológico de precariado já vem
sendo utilizado por alguns sociólogos de forma bastante intensa na Europa, em
especial na França e Inglaterra, a fim de se pensar a formação daquilo que eles
próprios denominam uma classe social de novo tipo. E o que seria uma classe
social de novo tipo? Seria aquele conjunto de indivíduos progressivamente
expulsos da proteção do Estado de bem estar social, tendo em vista o avanço do
neoliberalismo e o aprofundamento da crise econômica.
Significa que, com
base nas políticas de ajuste, em especial as chamadas e debatidas políticas de
austeridade impostas pela troika (mas, antes disso, com base nas políticas de
ajuste que viabilizaram a criação da União Europeia como unidade econômica, a implantação
do euro, o Tratado de Maastricht e tudo o que envolvia o contexto da expansão
do neoliberalismo), houve uma diminuição da chamada proteção social, ou da
amplitude de aplicação dos direitos sociais na Europa.
A flexibilização
da contratação de trabalhadores – que em Portugal se dá via contratos livres,
que são aqueles feitos via Pessoa Jurídica (PJ), de prestação de serviços –
acaba produzindo uma diminuição muito grande do impacto da proteção
trabalhista, em especial nos setores mais jovens dos trabalhadores. É a
ampliação daquela franja desprotegida do mercado de trabalho, que cresceu nos
anos 90 e se tornou muito vistosa e saliente agora, por conta do aprofundamento
da crise econômica europeia. De modo que se identifica essa nova classe social,
formada pelos indivíduos que sofrem a diminuição da proteção social na Europa.
E quanto à
motivação para este estudo, havia uma inquietação da minha parte com relação a
tal diagnóstico. Porque, olhando as coisas de uma perspectiva brasileira ou
mesmo norte-americana, vemos que, a rigor, a insegurança é a regra, sempre foi
assim. No Brasil é regra historicamente estabelecida, através da insegurança do
mercado e dos trabalhadores. Eu olhava para aquela discussão e percebia
problemas, que, diga-se de passagem, têm a ver basicamente com certa
sobreavaliação do papel histórico do chamado compromisso socialdemocrata do
pós-Segunda Guerra. Este compromisso foi de fato muito eficiente pra proteger
aquela fração branca, masculina, nacional, sindicalizada e adulta da classe
trabalhadora. Mas, evidentemente, não foi tão eficiente assim pra proteger a
parcela feminina, jovem, imigrante, não qualificada e não sindicalizada – mesmo
na classe trabalhadora européia, durante o auge do fordismo. O fordismo
socialdemocrata também sempre teve seus descontentes. Mas isso não era muito
discutido, não era tão exuberante, já que se tratava de trabalhadores
periféricos.
A partir de certo
momento, essa franja periférica cresceu muito, e daí vem o precariado. O
precariado é nada mais nada menos que a boa e velha superpopulação relativa da
qual já falava Marx, ou seja, aquela fração da classe trabalhadora composta
majoritariamente por aqueles que entram e saem muito rápido do mercado por
falta de qualificação - aquela parcela rural ou da informalidade, setores
formados por jovens no primeiro emprego e aqueles que têm ocupações tão
degradantes que os obrigam a produzir de forma anormal, ou seja, vender sua
força de trabalho abaixo de seu valor. São todos esses fatores somados.
O que tentei fazer
foi uma leitura construtivista, do ponto de vista da sociologia marxista, dessa
parte da classe trabalhadora que podemos chamar de proletariado precarizado.
Procurei separar setores mais qualificados da classe trabalhadora daqueles
setores pauperizados (ou lumpenizados) e populares, e concentrar a análise
neste proletariado precarizado, formado pelo conjunto de frações da classe
trabalhadora. A isso chamei de precariado, aquela classe trabalhadora
permanentemente pressionada pelo aumento da atual exploração capitalista e a
ameaça de exclusão social.
Correio da
Cidadania: Partindo deste olhar, como tem enxergado, de modo geral, o mundo do
trabalho no Brasil, especialmente no que diz respeito à condução de políticas e
medidas nas áreas trabalhista e sindical nestes dois últimos anos sob o governo
de Dilma Rousseff?
Ruy Braga: Eu argumento no livro que o precariado é uma
parte fundamental do mundo do trabalho no Brasil. Fundamental especialmente a
partir dos anos 90, em função de uma profunda reestruturação produtiva, com
integração da economia brasileira à economia internacional, através da
liberalização comercial e financeira, mas também pelo fato de que foi a década
da multiplicação das formas de contratação, quando tivemos o aprofundamento da
precarização. Foi a década do desemprego.
Temos, assim, um
manto bastante saliente, notável, do setor precarizado da classe trabalhadora.
Viu-se um aumento da informalização, seguido de aumento do desemprego, da
exploração, das formas de contrato por tempo determinado, enfim, essas formas
não canônicas de contratação - a despeito de a década de 2000 representar certa
guinada em algumas tendências, em especial, notavelmente, da informalização, já
que esta década foi de maior formalização do trabalho. Apesar disso, o aumento
da formalização foi acompanhado do aumento das taxas de volatilidade do
trabalho, de flexibilização, da precarização, da terceirização e,
consequentemente, do aumento daquele que é o aspecto mais visível da
deterioração das condições reais de consumo da força de trabalho, isto é, o
aumento dos acidentes e mortes no trabalho.
Percebo que,
apesar desse processo de formalização dos anos 2000, temos a reprodução da
centralidade de tal precariado no mercado de trabalho brasileiro, que acaba se
tornando o principal mecanismo de ajuste anticíclico das empresas, contratando
à vontade e consumindo a força de trabalho em condições muito duras.
Intensificam turnos e assim têm uma espécie de fórmula de ajuste, com a
volatilidade da demanda concentrada especialmente sobre essa fração precarizada
do proletariado brasileiro.
Na transição do
governo Lula para o governo Dilma, não tivemos grandes novidades do ponto de
vista do mercado de trabalho, que continua relativamente estável, a despeito
das ameaças de demissão de 2011. Estas ameaças foram contornadas por políticas
específicas do governo, principalmente desonerações da folha de alguns setores
estratégicos, que consomem muito trabalho, como notoriamente o faz a construção
civil. A não ser no contexto da famosa desaceleração econômica, o que
evidentemente coloca mais pressão sobre o desemprego e pressiona as empresas a
demitirem, não temos percebido um mercado de trabalho muito diferente do que
era no governo Lula.
Do ponto de vista
sindical, a partir de 2008, percebe-se nitidamente uma elevação do número de
greves no Brasil. Tem-se uma retomada da mobilização grevista, que, diga-se de
passagem, se acentuou de 2010 para 2011, com um aumento de 27% do número de
greves. Algumas delas de abrangência nacional, como a dos bancários e dos
Correios. Foram greves longas e com pautas bastante agressivas, exigindo
reajustes reais, ganhos e participações, melhorias da condição de trabalho, com
forte adesão dos seus trabalhadores. Acredito que esta seja uma tendência para
os próximos anos, até porque é uma tendência que vem de 2008.
Portanto, acredito
que o futuro aponta para uma retomada da mobilização grevista.
Correio da
Cidadania: Ainda neste sentido, um dos registros profundos de seu último livro
diz respeito ao processo de concessões reais que embasam aquela que é chamada
de ‘hegemonia lulista’, basicamente calcada em um consentimento passivo das
bases sociais e em um consentimento ativo por parte das direções sindicais.
Nesta linha de raciocínio, o que teria a dizer quanto ao atual patamar das
lutas trabalhistas e sindicais e a direção para a qual têm apontado?
Ruy Braga: Eu costumo dizer que o precariado se encontra
relativamente satisfeito com o modo de regulação lulista, isto é, com as
políticas públicas. Mas, quando nota as relações de trabalho, percebe os
limites do modelo de desenvolvimento pilotado por essa burocracia lulista e
setores oriundos dos sindicatos.
O argumento é
simples: o precariado se sente relativamente integrado pelas políticas públicas
(Bolsa-família, aumento do salário mínimo, ampliação do sistema federal de
ensino superior, políticas de ampliação do crédito consignado), através de um
progresso material relativo e a desconcentração da renda. O precariado percebe
tais questões.
Mas, ao mesmo
tempo, se dá conta de que, a despeito de tudo isso, aumenta também o
endividamento das famílias trabalhadoras. Apesar de existir emprego, é de baixa
qualidade; apesar da formalização, ganha-se muito mal. Pra se ter uma ideia,
durante o governo Lula foram criados 2,1 milhões de empregos por ano. Porém,
destes, 94% (2 milhões) remuneram até 1,5 salário mínimo, ou seja, até 980,
1000 reais. São muitos empregos, mas remuneram muito mal, porque não se requer
uma força de trabalho qualificada e sequer é necessária uma qualificação
especial. Absorve-se bastante gente, mas em condições degradantes, com salários
ruins.
O precariado
percebe esta situação, pois a vive no dia a dia. Assim, desenvolve uma relação
ambígua com o conjunto do modelo de desenvolvimento formado pelo modo de
regulação e o nível de exploração. Esse é o meu argumento.
Correio da
Cidadania: Como analisa o nível de inserção sindical, auto-organização e também
leitura da realidade dessa parte mais precarizada de nossa classe trabalhadora?
Ruy Braga: O nível histórico de sindicalização da classe
trabalhadora brasileira é baixo, historicamente baixo, em especial em setores
privados da economia. Se encontrarmos setores com 10%, 15%, de sindicalização,
já pode ser considerado muito elevado. Isso mudou profundamente na última
década, quando, com o aumento do emprego formal, aumentou-se também o nível de
sindicalização. Porém, ainda tem baixo impacto.
Mas o ponto que
considero mais importante da questão diz respeito basicamente ao processo de
reorganização sindical. Porque, afinal de contas, com um sindicato integrado à
estrutura de governo, pelo fato de ter acontecido uma certa fusão entre
sindicalismo e Estado, os trabalhadores se veem inseridos numa relação que é
mais ou menos a seguinte: por um lado, não podem colocar muita pressão nos
governos, porque são aliados; por outro, têm de satisfazer reivindicações de
suas bases, pois o sindicalismo está lá pra isso e quem está no comando pode
ser substituído numa eleição interna – deixando de lado, obviamente, a questão
do gangsterismo sindical.
No entanto, o fato
é que o poder sindical precisa de consentimento das bases, o que tem colocado
pressão sobre alguns setores, até mesmo do sindicalismo governista. Isso pôde
ser percebido na greve nacional bancária, na greve dos Correios, e em várias
questões que dirigiram greves de outros trabalhadores. E mesmo sindicalistas
lulistas, governistas, se veem pressionados em suas bases e precisam dar
resposta - afinal, representar os interesses das bases é uma questão elementar
do sindicalismo.
De todo modo, essa
integração sindicatos-Estado coloca uma série de problemas. Se pegarmos os
dados de greve, vemos que ela é muito forte no BB e na Caixa. E a negociação
tende a ser bem mais favorável aos trabalhadores quando a economia cresce a 4%,
5% ao ano, como ocorreu até 2008, diferente de agora, com um crescimento na
casa de 1,5%, 1,6%. Essa diferença se viu entre os governos Lula e Dilma. O
governo que espera crescer 1% ou 2% ao ano vai endurecer a negociação, em
comparação ao que ocorre quando a economia crescia 6%, 7%. Tal fato tem
acrescentado tensões dentro do sindicalismo, o que vem levando a uma relativa
reorganização do movimento sindical, com o reaparecimento de algumas centrais
descoladas do governismo, como a Conlutas e a Intersindical.
Temos uma
reacomodação do sindicalismo brasileiro e uma dinâmica mais tensa no
sindicalismo governista.
Correio da
Cidadania: Tomando os conflitos sociais de forma mais abrangente, o ano de 2012
marca-se de forma relevante por uma série de confrontos, envolvendo, além dos
movimentos grevistas de categorias sindicais, a luta pelos direitos indígenas,
movimentações sociais em várias esferas e embates das periferias urbanas pela
conquista e/ou reconquista de seus direitos. O que poderia dizer sobre 2012
neste quesito e, principalmente, da forma com que os vários níveis de governo,
municipal, estadual e federal, têm enfrentado tantas e legítimas demandas
sociais?
Ruy Braga: Os governos estaduais e municipais são um
desastre total. Governos que militarizaram o conflito social, colocaram a PM
pra reprimir famílias de trabalhadores, como no Pinheirinho, enviaram 400
policiais pra desocupar uma reitoria ocupada por 70 estudantes, entre outras
repressões policiais. É desastroso do ponto de vista social. Isso evidentemente
vai cobrar seu preço, haja vista que em São Paulo já cobrou, com o governo
municipal tendo sido conquistado pela oposição petista. E acho que o mesmo
acontecerá no nível estadual, a fatura vai ser cobrada.
Isso porque as
condições de vida e inserção da classe trabalhadora nas cidades e locais de
trabalho são muito precárias, devemos ressaltar. A despeito do que ocorreu no
mercado de consumo, por conta da relativa desconcentração de renda, as
condições de vida são muito limitadas, o que não tem mudado significativamente.
Em alguns casos tem piorado, e muito.
Portanto, temos um
aumento de consumo e, ao mesmo tempo, condições de vida e trabalho muito
degradantes. E evidentemente nada será resolvido com PM atirando bala de
borracha em família de trabalhador. Trata-se de uma forma absolutamente
desastrosa, trágica e equivocada de se lidar com a questão social.
O governo federal
é um pouco diferente no quesito, mas também não vejo avanços realmente
significativos nessa esfera de poder. Não existe reforma agrária séria, por
exemplo. Pelo contrário, o governo federal legalizou terras griladas, esqueceu
demandas históricas por terra e, através do Ministério das Cidades, fez muito
pouco em termos de legalização de terras ocupadas.
Assim, não sou
muito otimista quanto à relação entre governos e movimentos, em questões como
moradia e luta pela terra.
Correio da
Cidadania: 2012 foi também um ano de eleições municipais. O que os resultados
dos pleitos municipais de 2012 enunciaram, a seu ver, quanto ao andamento e
composição das forças políticas de nosso país?
Ruy Braga: Acredito que houve uma vitória do governismo,
consolidando a hegemonia lulista nesse campo da sociedade, na versão micro,
mais próxima do cidadão. Mas temos alguns movimentos contraditórios. Eu
chamaria a atenção para que os setores populares, plebeus, mais empobrecidos,
de fato procuram alternativas. Aqui em São Paulo houve a visibilidade
estrondosa da candidatura Russomanno, especialmente em regiões periféricas, o
que mostra certa disposição da parcela mais popular em buscar alternativas
àquelas que são as opções mais tradicionais, representadas no caso por Haddad e
Serra. O desempenho eleitoral do PSOL também mostra um pouco disso, uma
aproximação de setores mais plebeus a opções mais descoladas do establishment,
inclusive em São Paulo. Os eleitores do Russomanno mantiveram a postura de
procurar alguém mais permeável a suas demandas, de modo que repassaram seus
votos para o Haddad no segundo turno.
Estabeleceu-se uma
hegemonia lulista, mas ela se reproduz em terreno não tão firme quanto se
acredita.
Correio da
Cidadania: Inescapável é a constatação de que 2012 se encerra também marcado
pelo chamado mensalão. O que este episódio, com toda visibilidade e repercussão
de que foi alvo, te diz a respeito de nosso contexto político?
Ruy Braga: O mensalão representa um pouco a constatação
de que a política está muito igual, ou seja, o vale-tudo político-institucional
absorve as mais diferentes forças políticas e sociais e equaliza tudo por
baixo. O mesmo esquema de compra de votos utilizado pelo governo FHC foi também
usado pelo PT, e com os mesmos operadores. Com isso, temos um nivelamento por
baixo da política.
O grande problema
é que a população não vê muitas alternativas, até o momento, a essa polaridade.
Todo mundo sabe que é mais ou menos tudo farinha do mesmo saco. Mas o PT se
destaca mais pelas políticas sociais e públicas, com uma interlocução maior com
o movimento sindical e popular, o que evidentemente o coloca muito à frente do
PSDB nesse quesito. O PT consegue representar e empunhar uma agenda (a despeito
de todos os seus limites) da diminuição da desigualdade social. O PSDB não
consegue fazer isso porque é tradicionalmente o partido da desigualdade.
De todo modo,
prevalece a noção do vale-tudo eleitoral, que equaliza todo mundo por baixo - o
cenário fica sem muita diferença. Assim, entre as opções existentes, a
população se atrai mais para o lado de quem se apresenta com uma agenda de
diminuir um pouco a desigualdade.
Correio da
Cidadania: Pensando um pouco em termos mundiais, estamos diante do que se pode
chamar de repique da crise de 2008, com a evidente e atual desaceleração da
economia mundial, impactando a Europa de modo avassalador, e já reverberando
notavelmente nos países em desenvolvimento, entre eles, o Brasil. Como vê esse
cenário e o que pensa da conduta do governo Dilma na condução da política
econômica interna, essencialmente no que diz respeito ao caráter das medidas
que vêm sendo tomadas para evitar uma desaceleração maior da economia?
Ruy Braga: A crise mundial é muito intensa e o modelo de
desenvolvimento brasileiro durante os anos 2000 foi se deslocando
aceleradamente para aqueles que hoje são os principais motores da acumulação de
capital no país: bancos, mineração, agronegócio, petróleo, siderurgia,
construção civil... Muitos deles dependem notoriamente do mercado
internacional. Agronegócio e mineração, dois motores importantes, dependem
efetivamente de encomendas externas.
Com uma recessão
mundial estabelecida, a economia brasileira é obviamente atingida. O governo
tentou por um tempo aplicar medidas anticíclicas apoiadas no crédito, o que
teve seu fôlego, mas, a partir de certo momento, começou a claudicar, pois as
pessoas começaram a se intimidar e ver que não iriam conseguir pagar suas
dívidas. O governo modificou, portanto, tal agenda, não radicalmente, mas
acrescentando os investimentos em infraestrutura. Nos últimos quatro, cinco
anos, a partir de 2008, isso se intensificou, com anúncios de obras de
infraestrutura, integração da malha viária, qualificação dos portos, construção
de barragens, concessão de aeroportos...
São medidas
importantes, mas não têm capacidade de, por si mesmas, equacionarem o grande
problema de uma economia com as características da brasileira, isto é, o
investimento capitalista. O principal investidor é o próprio governo, através
do BNDES. Fora ele, o investimento privado é muito baixo. O investidor privado
efetivamente não se arrisca, até porque não precisa, além de buscar
remunerações bastante generosas. Agora que a taxa de juros tem caído, o
investidor se sente mais obrigado a investir o dinheiro, mas continua covarde.
O que, então, acontece hoje? O governo não consegue seduzir o investidor
privado, que por sua vez não é capaz de equacionar sozinho o problema do
investimento no país.
A realidade é que
crescemos pouco. Não estamos em recessão, mas vivemos um momento de flagrante
desaceleração econômica, no qual praticamente só se vê um único jogador em
campo, o governo. E ele não é capaz de resolver sozinho o problema.
Qual a solução? Ou
se nacionalizam os grandes meios de produção, com a estatização dos grandes
intermediários financeiros ou... Vai ser difícil.
Correio da
Cidadania: Você possui uma visão esperançosa das movimentações sociais que vêm
rondando o mundo, desde a primavera árabe até a grande quantidade de movimentos
‘Occupy’ que têm varrido diversos países, passando por alguns protestos
massivos na Europa?
Ruy Braga: Eu costumo citar Antonio Gramsci, sendo muito
pessimista na razão e otimista na vontade. Sinceramente, não coloco muita
esperança nos movimentos ‘Occupy’, muito espontaneístas e pouco orgânicos. A
primavera árabe é um processo diferente, no qual a palavra final não foi dada
ainda, mas que ocorre num contexto muito contraditório, com várias forças
internacionais assumindo protagonismo a partir de dado momento. Na Europa, sou
mais otimista com as movimentações dos trabalhadores e da juventude, mas vejo
grandes barreiras nacionais.
Assim, é
necessário internacionalizar tais lutas, especialmente na Europa, onde há mais
base para tal. Mas não tem ocorrido este contexto. Os trabalhadores gregos
lutam na Grécia, os trabalhadores espanhóis lutam na Espanha... Não há até, o
momento pelo menos, o desenvolvimento de um internacionalismo mais agudo e
radical. Minha esperança é de que não fique assim, que haja uma
internacionalização das lutas, em escala regional no caso da Europa, e em
escala mundial, acrescentando-se EUA, países árabes, latinos...
Correio da
Cidadania: Finalmente, 2012 acaba sob forte desaceleração econômica e 2014 é
ano de Copa e eleições presidenciais. O que você espera pra 2013, no sentido de
medidas a serem tomadas pelo governo para sanear as contas públicas e promover
crescimento, visto o reduzido espaço que terá para empreender tais tarefas no
ano seguinte?
Ruy Braga: O governo ainda tem mecanismos, bala na
agulha pra gastar. O BNDES é um dos maiores bancos do mundo, o governo tributa
muito fortemente, tem condições de reforçar mecanismos anticíclicos...
Quanto aos
direitos trabalhistas, a pressão por flexibilização é grande, haja vista as
propostas que têm pipocado, como o Acordo Coletivo Especial (onde deve
prevalecer o negociado sobre o legislado), pressões do empresariado por
desonerações em todos os setores, com impacto sobre a previdência, pressões
pela diminuição do “custo Brasil”, flexibilização em contratações...
É o que eu digo, o
mercado de trabalho brasileiro é excessivamente flexível, não é pouco, longe
disso. O trabalhador precisa de mais direitos, não menos. Só que não vejo muita
decisão do governo de atacar tal problema, pelo contrário. Se for aprovado o
acordo especial, acredito que o princípio do acordado sobre o legislado, que
vigoraria a partir de então, vai diminuir ou eliminar direitos para a grande
parcela dos trabalhadores que não são representados nos sindicatos fortes.
Ao mesmo tempo,
não vejo, como disse, disposição do governo em ampliar direitos trabalhistas.
Afinal, passamos todo o período de crescimento econômico nos anos Lula sem ver
nenhum novo direito acrescentado. Acho que há um único ponto que foge à regra
histórica de não criação de novos direitos, que é a legislação sobre a
empregada doméstica, a ser discutida e votada. Esta talvez seja a única
iniciativa do governo que possa eventualmente ser alinhada aos ganhos de
direitos. Fora isso, do ponto de vista dos direitos sociais e trabalhistas,
tivemos uma era perdida.
Valéria Nader,
jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é
jornalista.
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