"O banco de
horas tem sido um dos principais mecanismos deste processo de não compensação
e, portanto, de incremento à superexploração e à precarização da força de
trabalho", constata o sociólogo.
Apesar de as
principais centrais sindicais apoiarem a PEC 231/95,
referente à redução da jornada de trabalho, é preciso "introduzir de forma
mais efetiva a discussão sobre o fim do banco de horas e a compensação justa de
horas-extras", diz Bernardo Corrêa à IHU On-Line. Segundo ele, "o banco de horas tem
sido um dos principais mecanismos deste processo de não compensação e,
portanto, de incremento à superexploração e à precarização da força de
trabalho".
Na avaliação do
sociólogo, "a flexibilização da jornada não tem favorecido os
trabalhadores, pois tem feito com que se amplie o mecanismo de apropriação pelo
capital da parte não remunerada do trabalho".
Na avaliação do
sociólogo, ao aceitarem o banco de horas, CUT, Força Sindical, CTB e CGT "terão uma contradição mesmo que haja a
redução da jornada formal, pois esta apropriação informal e flexível do tempo
livre dos trabalhadores seguirá permitindo que as empresas incrementem a taxa
de exploração mediante um tempo de trabalho que não é sequer negociado".
Na entrevista a
seguir, concedida por e-mail, ele enfatiza a necessidade de uma
"reorientação estratégica do movimento sindical, superando o
corporativismo, a cooptação por parte do Estado e a burocratização das direções
sindicais, para que o movimento dos trabalhadores possa de fato reconquistar a
iniciativa, única forma, a meu ver, de garantir a redução da jornada e combater
sua flexibilização".
Bernardo Corrêa é sociólogo da Fundação Lauro Campos.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line - Como
as centrais sindicais têm se posicionado diante da PEC 231/95?
Bernardo Corrêa - As principais centrais se posicionam a favor
da PEC, no entanto seria necessário introduzir de forma
mais efetiva a discussão sobre o fim do banco de horas e a compensação justa de
horas-extras. Sei que Conlutas e Intersindical se posicionam contrariamente ao
banco de horas, mas CUT, Força Sindical, CTB e CGT, ao aceitarem, terão uma contradição mesmo que haja
a redução da jornada formal, pois esta apropriação informal e flexível do tempo
livre dos trabalhadores seguirá permitindo que as empresas incrementem a taxa
de exploração mediante um tempo de trabalho que não é sequer negociado.
IHU On-Line - Por
que é difícil reduzir a jornada de trabalho no Brasil?
Bernardo Corrêa - Não podemos ter uma explicação monocausal
para esta questão. Em primeiro lugar, é preciso localizar o Brasil no cenário
internacional e no que David Harvey,
geógrafo marxista inglês, tem chamado de acumulação flexível. Ou seja, formas
cada vez mais desregulamentadas e precarizadas de trabalho. Poderíamos
enquadrar aí os processos de terceirização (nas empresas e na administração
pública), iniciados na década de 1990 e que se alastraram durante os anos 2000,
assim como modificações na gerência sobre o trabalho e a produção, modalidades
como o just-in-time, entre outros que compõem a receita
toyotista.
Em tempos de
crise, este processo de flexibilização tem se intensificado inclusive em países
centrais do capitalismo, como China, EUA e Japão, e com força, desde 2007, nos
países do sul da Europa. Neste cenário, o Brasil, como país dependente na
economia-mundo, foi extremamente afetado pelas políticas neoliberais,
particularmente após os anos 1990. Também se fragilizaram as formas
associativas clássicas dos trabalhadores, e logo, da resistência às
sistemáticas retiradas de direitos.
Obviamente, por
razões econômicas, a redução da jornada não partiu dos patrões, e os
trabalhadores não tiveram forças para conquistá-la. Precisamos de uma
reorientação estratégica do movimento sindical, superando o corporativismo, a
cooptação por parte do Estado e a burocratização das direções sindicais, para
que o movimento dos trabalhadores possa de fato reconquistar a iniciativa,
única forma a meu ver de garantir a redução da jornada e combater sua
flexibilização.
IHU On-Line - Quais
são os principais mecanismos utilizados para flexibilizar a jornada de
trabalho?
Bernardo Corrêa - Somado à informalização do trabalho, creio
que um dos mais importantes é o banco de horas, pois a legislação sobre as
horas-extras é muito clara no que se refere à compensação; justamente por ser
extra, deve ser remunerada em uma proporção superior à hora normal trabalhada.
Conforme pesquisas realizadas pela Organização Internacional do
Trabalho — OIT e pelo DIEESE, pudemos
notar que a maioria das negociações têm sido feitas na proporção 1h/1h, ou
seja, remunerada como hora normal de trabalho e paga com folgas, algo que só o
banco de horas permite e que, na maioria das negociações coletivas pesquisadas,
sequer foram elementos da mesa de negociação. Além disso, não são raras as
notícias de que “se perdem” horas que jamais serão compensadas. Utilizando a
metáfora do artigo, estas horas “escorrem” pelas mãos dos trabalhadores de
maneira gelatinosa como o relógio de Dalí.
IHU On-Line - Quais
são as implicações trabalhistas de uma jornada de trabalho flexível? Como você
vê a introdução do banco de horas nas empresas?
Bernardo Corrêa – As repercussões são perversas, pois o tempo
de trabalho é central na exploração do trabalho pelo capital, particularmente o
tempo não pago, pois é nele que reside a mais-valia que, ao realizar-se,
impulsiona a acumulação capitalista. Logo, se a proporção entre trabalho não
pago e salário varia favorecendo o primeiro, a taxa de exploração é maior tanto
quanto a taxa de mais-valia. Em poucas palavras, a flexibilização da jornada
não tem favorecido os trabalhadores, pois tem feito com que se amplie o
mecanismo de apropriação pelo capital da parte não remunerada do trabalho. O
banco de horas tem sido um dos principais mecanismos deste processo de não
compensação e, portanto, de incremento à superexploração e à precarização da
força de trabalho.
IHU On-Line - Pode
nos explicar a ideia de que parece haver uma espécie de colonização do tempo
disponível sobre o tempo livre?
Bernardo Corrêa - É uma discussão, em última instância,
relacionada aos sentidos do trabalho e da vida fora da atividade laboral. O que
entendemos por tempo livre é justamente aquele relacionado à fruição e à
possibilidade de desenvolvimento de atividades artísticas, culturais,
científicas ou mesmo de lazer que se realizam fora do trabalho. O tempo
disponível é aquele que, em um cenário de alienação do trabalho que caracteriza
o capitalismo, é disponível ao capital.
Muitos autores têm
enfatizado que o próprio consumo vem ganhando cada vez mais contornos
produtivos. Quando pensamos, por exemplo, que grande parte da classe trabalhadora
“aproveita” seu tempo de lazer em shoppings, consumindo, podemos notar que a
ausência de espaços públicos com este fim incrementa o ciclo de acumulação,
corroborando esta tese.
Para garantir os
altos níveis de consumo, dado que os salários no Brasil são baixos, impõem-se
jornadas extenuantes, tendo as horas-extras como mecanismo de complementação
salarial. Neste sentido, aumenta a disponibilidade da força de trabalho ao
capital em detrimento do tempo livre dos trabalhadores, aumentando inclusive as
doenças do trabalho, como muitas pesquisas têm apontado. É uma tendência do
capitalismo contemporâneo, que se reforça com sua crise.
IHU On-Line - Em
artigo recente você menciona o exemplo da França, onde as jornadas trabalhistas
são de 35 horas, mas aponta que mais de 60% da população tem jornadas acima de
49 horas semanais. Por que isso acontece?
Bernardo Corrêa - Na França, temos um fenômeno distinto
relacionado à imigração da força de trabalho de países periféricos e à
informalidade que impera no trabalho dos imigrantes. Este aspecto agrava o
hiato entre trabalhadores estáveis e temporários com a presença marcante do
trabalho dos jovens.
Evidentemente, às
empresas interessa reduzir seus custos, pois a legislação trabalhista europeia
em geral e a francesa em particular é bastante robusta no que se refere aos
direitos. Pelo grau de informalidade (e infelizmente de xenofobia), a
organização sindical e a resistência à precarização dos contratos são bastante
difíceis. Segundo a própria OIT, este fenômeno é
determinante para o aumento da jornada. Em outros países, como Portugal, temos
experiências associativas interessantes de resistência à precarização do
trabalho, como a Associação dos Precários Inflexíveis,
que pode ser um bom exemplo para o conjunto da Europa.
IHU On-Line - Quais
as razões de haver uma tendência global à perda de força da secular intenção à
redução da jornada?
Bernardo Corrêa - A situação de crise pela qual passa o
capitalismo em escala global faz com que as grandes corporações e bancos
queiram repassar os seus custos para os trabalhadores. O expediente utilizado é
a produção de desemprego e a diminuição dos direitos conquistados, através do
desmantelamento do que restou do Estado de bem-estar social. Há, nesse caso,
uma baixa no preço da força de trabalho (salários) e também apresentam-se mais
dificuldades e desafios às formas associativas clássicas, como os sindicatos.
Desse modo, ao produzir uma situação de instabilidade e incerteza, propicia-se
um cenário no qual as pessoas aceitam piores condições de trabalho, por razões
óbvias de sobrevivência. Sem alternativas de resistência, o que resta? A
iniciativa patronal, geralmente disposta à máxima utilização produtiva do
trabalho, que é medida essencialmente pelo tempo disponível. Portanto, enquanto
não se fortaleçam as forças do trabalho, prima a tendência pelo aumento, e não
pela diminuição da jornada, mesmo que comprovadamente a produtividade do
trabalho tenha aumentado em escala global com a introdução de inovações
tecnológicas, da microeletrônica, etc. É como aquele jogo do “cabo de força”.
Para que uns poucos sigam ganhando muito, muitos passarão a ganhar pouco e trabalhar muito. Por isso, é tão
necessário lutar para mudar esta situação.
IHU On-Line -
Deseja acrescentar algo?
Bernardo Corrêa - Uma questão apenas. Refere-se ao Projeto de Lei 4.330 de 2004, que tramita atualmente no
Congresso Nacional. O PL, de autoria do Deputado Sandro Mabel (PMDB-GO), permite a contratação
de terceirizados em todas as atividades, inclusive nas chamadas atividades-fim,
as principais das empresas, que poderão funcionar sem nenhum contratado direto
e fragilizarão a organização e a representação sindicais. Segundo o DIEESE, em seu Relatório Técnico "O Processo de
Terceirização e seus Efeitos sobre os Trabalhadores no Brasil", a
diversificação dos contratos tem associado de forma indelével a terceirização à
precarização em nosso país.
Julgo, entretanto,
que a partir do levante que houve em junho e da greve geral de 11 de julho
deste ano, estamos em melhores condições para derrotar este tipo de proposta,
visto que as mobilizações colocaram os governos e os parlamentares em uma
situação defensiva, modificando o “tabuleiro” político que parecia tão estável.
Caberá ao movimento sindical conectar-se a esses novos movimentos sociais para
que se possa avançar na defesa dos direitos. Talvez este seja o maior desafio
dos sindicatos, passados 70 anos da Consolidação das Leis do
Trabalho.