Armando Boito Jr. é professor
do Departamento de Ciência Política da Unicamp e editor da revista Crítica
Marxista. É autor de O sindicalismo de Estado no Brasil – uma análise
crítica da estrutura sindical (São Paulo e Campinas, coedição Editora
Hucitec e Editora da Unicamp, 1991) e de Política neoliberal e
sindicalismo no Brasil (São Paulo, Editora Xamã, 2002).
A entrevista foi
concedida ao Jornal Voz Operária,
órgão da Corrente Comunista Luiz
Carlos Prestes (CCLCP), após a realização do curso Sindicalismo de Estado no Brasil ministrado
pelo professor e promovido pela Escola
de Formação Luiz Carlos Prestes em novembro de 2012.
Eis a entrevista.
Como caracterizar
a estrutura Sindical Brasileira? Quais são os seus elementos principais?
Deixe-me começar
por uma advertência teórica. Nós vamos falar da instituição sindical
brasileira. Ora, algumas tradições marxistas têm por orientação ignorar a
importância das instituições políticas e menosprezar o debate sobre a
instituição sindical. Isso porque imaginam que apenas a economia determina a
prática dos agentes sociais. Supõem que a instituição sindical, seja qual for a
sua estrutura organizacional, pode comportar qualquer linha política. Tudo
dependeria, única e tão somente, de quem ocupa a direção do sindicato. Essa não
é, certamente, a posição teórica de Marx, de Engels e
de Lênin.
Marx mostrou que a
organização institucional do Estado capitalista é imprópria para o exercício do
poder operário e analisou o que ele denominou a forma institucional própria do
poder operário em suas reflexões sobre a Comuna de Paris de 1871. Para Lênin, em suas análises consagradas no livro O que fazer?,
a forma institucional de organização do partido operário está indissoluvelmente
ligada ao seu caráter reformista (organização frouxa) ou revolucionário
(centralismo democrático). Pois bem, os marxistas brasileiros deveriam seguir
essa tradição teórica e refletir mais sobre a forma da nossa organização
sindical, forma essa que foi implantada em nosso país na década de 1930 e que,
passando por modificações, persiste, no essencial, até os dias de hoje.
Feita essa
advertência, entremos no miolo da sua pergunta. A estrutura sindical brasileira
é uma instituição integrada ao Estado capitalista graças a alguns mecanismos
legais e organizativos que se reproduzem graças a determinada ideologia. A
integração ao Estado possibilita que o sindicato possa viver distante dos
trabalhadores ou – em casos extremos e que são muitos – até separado da sua
base. A dependência do sindicato diante do Estado tem como contrapartida sua
independência diante dos trabalhadores. Quais são os principais mecanismos
dessa estrutura sindical?
O seu elemento
central é a necessidade de que o Estado – seja por intermédio de um Ministério,
seja por intermédio do judiciário – reconheça uma organização como sindicato
para que essa organização possa funcionar como tal, isto é, para que possa
negociar condições de trabalho e salário com o empregador. Outros elementos
importantes da estrutura são a unicidade sindical, por intermédio da qual a
representação sindical oficial é concedida em regime de monopólio para um
sindicato representar um determinado segmento dos trabalhadores numa determinada
base geográfica, e a capacidade legal, que o Estado outorga ao sindicato, de
ele impor contribuições aos trabalhadores associados e não associados. O
reconhecimento oficial do Estado é o elemento de base da integração, sem ele os
demais não poderiam existir. Contudo, a unicidade sindical e as contribuições
compulsórias são elementos muito importantes de controle do aparelho sindical
pelo Estado. É esse tipo de estrutura que, como já disse, integra o sindicato
ao Estado e, num mesmo movimento, afasta-o dos trabalhadores.
A intervenção do
Estado na vida sindical também não seria parte da estrutura sindical?
Sim, faz parte. Eu
me referi aos elementos centrais da estrutura sindical. São esses elementos que
possibilitam essas intervenções todas. Vou dar alguns exemplos: a organização
por categoria, a intromissão do Estado nas finanças do sindicato, o poder de tutela
do Estado sobre as eleições sindicais e, inclusive, o seu poder de destituir e
de constituir as diretorias dos sindicatos oficiais.
O dinheiro do
sindicato é proveniente de impostos ou contribuições assegurados pelo Estado. É
claro, portanto, que o Estado pode tutelar o uso desse dinheiro. No Brasil, os
sindicatos estão proibidos de repassar fundos financeiros para candidaturas que
queiram apoiar. Veja o contraste com a situação britânica. Lá, como sabemos, se
trata do tradeunionismo, um sindicalismo reformista. No entanto, foram esses
sindicatos que criaram o Labour
Party, um partido operário reformista responsável pela implantação do
Estado de bem-estar no Reino Unido. Esse partido e os seus candidatos eram
sustentados pelos sindicatos – hoje, a situação mudou. Logo no início do século
XX, a justiça tentou impedir esse esquema. Os sindicatos britânicos se
rebelaram, fizeram campanha por todo o país e a justiça teve de recuar. Aqui no
Brasil, tanto reformistas quanto revolucionários aceitam a interdição da
justiça burguesa e não repassam, a não ser clandestinamente, fundos sindicais
para partidos e candidatos. O Estado pode tutelar porque é ele que garante
esses fundos e os sindicalistas são realistas: sabem que se não se curvarem,
poderão perder os fundos financeiros propiciados pelo Estado.
A imposição de
organização por categoria é outro tipo de intervenção e é uma intervenção que
estimula o corporativismo. Por que não se parte para uma organização em outras
bases? Teve um tempo em que a CUT falou muito em organização por ramo. Por que
não implementam isso? Porque, não sendo permitido pela legislação, nenhum
sindicalista vai fazê-lo pois isso significaria cair na ilegalidade sindical e
perder as supostas vantagens conferidas pela estrutura.
São os elementos
centrais da estrutura que estão por trás, também, do papel das DRTs e da
justiça nas eleições sindicais e na capacidade do Estado de destituir e nomear
direções. Esse é, poderíamos dizer, mais um efeito da estrutura que a estrutura
ela mesma. Se é o Estado quem deve dizer qual é o único sindicato que
representa uma determinada categoria numa determinada base territorial, é claro
que tal capacidade já lhe confere o poder de destituição de uma diretoria que
tenha utilizado de maneira ilegal o poder que o Estado lhe conferiu e de
constituição de diretorias, isto é, de nomear interventores em situação de
crise. Em períodos de ditadura ou de aumento da repressão, os governos utilizam
esses recursos de maneira massiva e ostensiva; nos períodos democráticos, esse
recurso é usado molecularmente e, muitas vezes, por solicitação dos próprios
dirigentes sindicais que pretendem ocupar o lugar dos dirigentes rivais. E o
curioso é que mesmo os dirigentes que se dizem contra a estrutura sindical
também têm esse tipo de prática.
Com ou sem
estatuto padrão, na estrutura sindical, o Estado está sempre presente, das
formas mais variadas e nas situações as mais diversas, condicionando,
tutelando, intervindo na vida sindical. Se você procurar, por trás de cada
intervenção autoritária do Estado sempre encontrará a investidura, a unicidade
sindical e as contribuições compulsórias: esses elementos são a base de tudo.
Quando se fala em
eliminar ou acabar com a estrutura sindical, do que é que estamos falando?
Estamos falando de
substituir o sindicato atual por um sindicato de outro tipo que seja ligado às
massas trabalhadoras, dependente dela para se legitimar como órgão
representativo e para se sustentar financeiramente. Numa estrutura sindical
desse tipo, não pode haver unicidade sindical, isto é, não será o Estado quem
irá conferir ao sindicato o título de representante (em regime de monopólio)
deste ou daquele segmento de trabalhadores e não poderá haver, tampouco,
contribuições sindicais obrigatórias, impostas por lei, e que se impõem a todos
os trabalhadores independentemente da vontade desses. Teríamos uma situação de
direito ao irrestrito pluralismo sindical, isto é, de liberdade de organização
sindical. Numa situação como essa, a capacidade do Estado de intervir na vida sindical
seria fortemente reduzida; principalmente, o Estado perderia sua capacidade de
destituir e nomear dirigentes sindicais, como se fez tantas vezes na história
do Brasil, como decisão unilateral de regimes ditatoriais, e como se faz ainda
hoje, numa situação de democracia, quando o Judiciário intervem nos sindicatos
para arbitrar disputas de base e de eleições entre correntes sindicais rivais.
Numa situação como essa, as correntes atuantes no sindicalismo teriam de
mostrar, na prática, a sua representatividade e ter capacidade política para
arrecadar fundos sindicais junto aos trabalhadores. O foco da atuação dos
sindicalistas seria a massa trabalhadora e nunca os corredores do Ministério do
Trabalho ou do Poder Judiciário. Numa situação como essa, as direções fazem a
luta de ideias, de propostas e de linha de atuação e os trabalhadores escolhem,
selecionam, permitem que algumas prosperem e condenam outras à decadência. Nos
países onde há liberdade sindical, a tendência é a de o número de sindicatos
ser muito menor que aquele existente no Brasil. Os sindicalistas somam forças
para criar e consolidar grandes sindicatos e podem lutar para implantar e
consolidar um sindicato unitário, sem romper, contudo, com o direito ao
pluralismo e sem pretender, portanto, voltar à situação de unicidade. Unidade e
unicidade sindical são coisas muito diferentes. No Brasil, os movimentos
populares os mais variados funcionam e atuam dessa maneira – movimento
camponês, movimento por moradia, movimento estudantil e, até, uma boa parte do
movimento sindical dos funcionários públicos. Por que é que somente o movimento
sindical não poderia funcionar a agir assim? Por que é que apenas o sindicato
precisaria da tutela do Estado?
Na sua opinião,
quais são as principais implicações dessa estrutura para o movimento sindical?
Essa instituição
sindical desestimula a participação ativa do trabalhador e pode, no limite,
viver e se reproduzir sem associados – e temos muitos exemplos de sindicatos no
Brasil que se encontram próximos dessa situação. Essa estrutura alimenta uma
concepção pequeno-burguesa do Estado, como entidade promotora e protetora da
organização dos trabalhadores, em vez de mostrar aos trabalhadores que eles
devem contar com a sua própria força.
Os estudos sobre
sindicalismo no Brasil, que são muitos e, talvez, representem uma das áreas de
pesquisa em que mais se conhecem estudos de casos específicos, esses estudos
mostram a existência, desde a década de 1930 e até o presente, de um padrão de
organização e de luta sindical que desestimula a participação dos trabalhadores. Lênin dizia que o sindicalismo pode ser uma escola de
guerra ou de socialismo; pois bem, no Brasil ele deseduca politicamente os trabalhadores.
No Brasil, em muitos aspectos, é o Estado capitalista que desempenha, para o
sindicato, a função que os partidos social-democratas e comunistas
desempenharam e desempenham para o sindicato: ser uma referência política
legítima para orientar a vida sindical. É verdade que o sindicato de Estado
pode até estimular a luta contra os empregadores, mas estimula, pela sua
própria estrutura organizativa (reconhecimento, unicidade e impostos) e pelo
funcionamento daí decorrente (intervenção multifacetada e permanente do Estado
na vida sindical), a ilusão frente ao Estado capitalista e interpõe, por isso,
uma muralha da China entre a luta reivindicativa e a luta socialista. O grande
prejuízo para o movimento operário é, portanto, um prejuízo político. Porém,
até mesmo no plano da luta reivindicativa, essa estrutura, por desestimular a
organização dos trabalhadores nos seus locais de trabalho e por colocar nas
mãos do Estado o poder de proteger as lideranças sindicais que lhe são mais
próximas, essa estrutura tolhe, inclusive, a luta reivindicativa.
Poderíamos
concluir da sua fala que os trabalhadores não deveriam apresentar
reivindicações ao Estado?
Aí reside muitas
vezes um mal entendido. Eu não estou defendendo a retirada do Estado do campo
das relações de trabalho.
Os trabalhadores
quando lutam por reformas – e o sindicalismo luta, fundamentalmente, ainda que
não exclusivamente, por reformas – necessitam recorrer ao poder de Estado para
impor limites à exploração capitalista. Esses limites têm de ser impostos pelo
direito. Esse tipo de intervenção, os trabalhadores devem pleitear e não
rejeitar. Não estamos criticando, portanto, o direito do trabalho que são as
normas protetoras conquistadas com tanta luta e consagradas na CLT. Estamos
criticando o direito sindical brasileiro. O que esse direito faz é outra coisa.
Ele impõe limites à liberdade de organização dos trabalhadores e esse direito
sindical, que está consagrado numa das partes da CLT, os trabalhadores devem
combater. Devemos nos definir diante das medidas específicas de intervenção do
Estado e utilizando como critério os interesses imediatos de históricos dos
trabalhadores e não assumir uma posição genérica a favor ou contra qualquer
tipo de intervenção do Estado. Nem a burguesia faz isso. É certo que ela quer
fazer crer que procede desse modo quando sugere ser “contra a intervenção do
Estado” e a favor do “livre jogo das forças de mercado”. Mas, esse discurso
ideológico esconde o fato de que a burguesia só rejeita um tipo de intervenção:
a intervenção do Estado que favorece os trabalhadores – direitos trabalhistas,
direitos previdenciários e outros – mas nunca a intervenção do Estado que favorece
a burguesia – crédito subsidiado de um banco público como o BNDES, socorro a empresas em
dificuldades etc. Aliás, é sintomático e revelador do caráter ideológico do
discurso neoliberal o fato de a burguesia e os seus porta-vozes combaterem o
que consideram a rigidez proveniente da intervenção do Estado nas relações de
trabalho mas, ao mesmo tempo, aceitarem, de bom grado, a intervenção desse
mesmo Estado nas relações sindicais. Embora dissimulem, eles sabem onde lhes
pega o calo.
Em suma devemos
lutar contra a legislação sindical existente, mas defender o direito do
trabalho.
Desde sua criação,
a partir de 1930, houve alguma modificação significativa nessa estrutura
sindical?
Sim, houve, embora
a estrutura, no essencial, tenha persistido. O capitalismo e a sociedade
brasileira mudaram muito desde 1930. Houve modificações na legislação, na
relação com o Estado e os governos e tudo isso relacionado com a força e a
orientação da luta operária em cada conjuntura.
A necessidade de
reconhecimento oficial do sindical e a unicidade sindical foram estabelecidas
por decreto em 1931. Os anarco-sindicalistas e os comunistas lutaram contra a
oficialização dos sindicatos que dirigiam. O governo ofereceu muitas iscas para
atrair os trabalhadores. Havia direitos e prerrogativas que somente os
sindicatos oficiais e os trabalhadores a ele filiados poderiam usufruir. Na Constituição de 1934, estabeleceu-se
um pluralismo sindical restrito. Seria admissível até três sindicatos por
categoria em cada base territorial. Isso não é liberdade sindical, porque o
Estado continua com o poder de reconhecimento e de tutela. Em 1937, na Constituição
da ditadura do Estado Novo,
o pluralismo restrito foi suprimido e se reinstaurou a unicidade. Em 1940 foi
criado o imposto sindical que, desde 1966, é denominado contribuição sindical.
Em 1943, a Consolidação das Leis
do Trabalho, além de conferir inúmeros direitos trabalhistas, consolidou
os três elementos básicos da estrutura – reconhecimento oficial, unicidade e
imposto sindical.
Na ditadura do Estado Novo (1937-1945) e na Ditadura Militar (1964-1988), a
gestão da estrutura sindical foi muito dura. Os governos desse período
promoveram verdadeiras varreduras nos sindicatos oficiais, depuseram centenas
de diretorias combativas e criaram um viveiro de dirigentes pelegos que puderam
agir contando com todas as benesses que a estrutura sindical lhes conferia. Nos
períodos democráticos, o controle se dá de modo mais liberal, mas é também
muito eficiente. No período democrático de 1945-1964, o governo tinha o PTB que
foi um partido criado a partir do aparelho da estrutura sindical e para apoiar
o varguismo. No período democrático atual, a pluralidade de correntes e
partidos, cada um com o seu quinhão da estrutura sindical, instaurou uma
disputa muitas vezes burocrática que divide, parte e reparte o sindicalismo e
tudo isso envolto no discurso de defesa da unidade – na verdade, de defesa da
unicidade sindical.
Nessa última
democratização, a Constituição de
1988 promoveu reformas importantes na estrutura sindical: consagrou
os elementos centrais da estrutura sindical na própria Constituição e
introduziu uma alteração importante nos mecanismos de controle do Estado sobre
o processo de criação de sindicatos. O controle se dava a priori e pelo
executivo. O Ministério do Trabalho expedia uma carta para a associação
requerente funcionar, caso demonstrasse documentação completa, como associação
pré-sindical. Após três anos de – digamos assim – um “estágio probatório”, o
Ministério poderia expedir uma carta sindical definitiva. Esse processo
tutelar, autoritário e prolongado foi substituído por um mecanismo aparentemente
democrático: um controle feito apenas a posteriori e pelo ramo judiciário. Essa
mudança foi vista pelas correntes organizadas na CUT, que congregava, então, todas as correntes socialistas e
progressistas do sindicalismo brasileiro, como uma vitória do campo operário e
popular. E, de fato, essa mudança foi uma resposta à luta operária que vinha em
ascensão desde 1978 no período de crise da ditadura militar. Porém, tal mudança
produziu efeitos indesejáveis e não esperados.
Aparentemente,
temos uma situação de liberdade sindical. Desde 1988, para criar um sindicato
basta um registro em cartório que deve ser notificado ao Ministério do Trabalho.
O sindicato já existente que se sentir prejudicado poderá ingressar na justiça
contestando a nova entidade. Resultado: ficou facílimo criar sindicato no
Brasil. Se tivéssemos liberdade de organização sindical, a situação seria
diferente. Nenhum sindicato teria monopólio da representação e tampouco
dinheiro fácil vindo do Estado. Para criar um sindicato, você precisaria ter
legitimidade junto à massa, organizá-la e obter recursos voluntariamente
cedidos pelos trabalhadores. Os aventureiros encontrariam dificuldades e
obstáculos muito grandes. Porém, como temos a investidura, a unicidade e as
contribuições obrigatórias – criar sindicatos, inclusive sindicatos fantasmas,
passou a ser uma verdadeira brincadeira de criança. Explodiu, desde então, uma
indústria de criação de sindicatos. Isso é algo que os defensores da unicidade
sindical escondem: a unicidade estimula a pulverização, e não a unidade, dos
sindicatos no Brasil. A liberalização da criação dos sindicatos sem liberdade
efetiva de organização sindical é tão ruim quanto o controle estrito propiciado
pelo velho estatuto padrão e pelo intervencionismo do Ministério do Trabalho.
Como explicar a
longevidade da estrutura sindical. Há alguma razão ou algum elemento
determinante para a reprodução e permanência dessa estrutura?
Eu penso que há. O
elemento fundamental é a tradição populista da política brasileira. Eu sei que
esse conceito é muito contestado, mas eu o considero útil. Não o utilizo no
sentido weberiano de “liderança carismática”, nem no sentido que lhe atribui a
propaganda conservadora que identifica populismo com “demagogia” e com
“manipulação” de uma massa infantilizada. O populismo é um fenômeno semelhante ao bonapartismo de que nos fala Marx em seu livro O 18
Brumário de Luís Bonaparte. Os trabalhadores com baixa capacidade de
organização sindical e política podem transferir para o Estado capitalista, que
é uma instituição aparentemente universalista, supostamente aberta a todas as
classes sociais, a tarefa de defesa dos seus interesses. Os trabalhadores
urbanos de origem rural no período aberto pela Revolução de 1930 e, hoje, os
trabalhadores pauperizados, subempregados por conta própria e desempregados,
esse produto típico do capitalismo neoliberal, esses trabalhadores podem
desacreditar da sua própria força e passar a cultuar o Estado como entidade
protetora. Isso é o populismo. Ora, o mito do Estado protetor, esse fetiche, se
realiza, no plano sindical, na ideia de que caberia ao Estado assegurar a
representatividade (investidura), unidade (unicidade) e as finanças
(contribuições obrigatórias) do aparelho sindical dos trabalhadores. É por isso
que o sindicalismo brasileiro é uma escola de populismo e não de socialismo. A
sua forma de organização e os seus métodos de luta ensinam aos trabalhadores
que eles devem contar os “de cima” e não com a sua própria força.
Em 2003, o governo
Lula apresentou um projeto de reforma sindical. Qual a sua análise a respeito
deste projeto? Como você analisa o decreto de reconhecimento das Centrais
Sindicais?
A reforma sindical
não prosperou, porém, o projeto nascido do Fórum Nacional do Trabalho previa tanto a manutenção da
unicidade sindical quanto das contribuições sindicais obrigatórias, isto é,
previa a manutenção da estrutura sindical. O único resultado da reforma foi a
legislação de reconhecimento das centrais sindicais que passam, desde então, a
entrar no rateio do imposto sindical – e a verba proveniente desse rateio é
milionária. A proliferação de centrais sindicais na década de 2000 é um
fenômeno complexo. Reflete, de algum modo, a força do sindicalismo. A legislação
sindical e os sucessivos governos proibiam a organização de centrais sindicais.
Porém, reflete, também, a condição subalterna do sindicalismo brasileiro: a
dependência diante do reconhecimento do Estado e a verdadeira corrida às verbas
do imposto sindical. Criou-se uma situação curiosa: os ardorosos defensores da
unicidade sindical em nome da unidade dos trabalhadores praticam, sem pejo, o
pluralismo sindical. Temos, hoje, sete centrais sindicais e todas elas defendem
a unicidade em nome da unidade!
Em artigo recente,
escrito juntamente com Paula Marcelino ([1]), ao tomar a atividade grevista dos
anos 2000 como indicador, vocês afirmaram que o sindicalismo brasileiro
encontra-se em fase de recuperação. Qual é o perfil desta recuperação? Podemos
afirmar que caminhamos para uma retomada da organização dos trabalhadores em
patamares superiores aos vivenciados em 1978-1983 quando criou-se a CUT e o PT,
ou essas lutas restringem-se apenas às reivindicações econômicas? Essa retomada
das greves tem levado a um questionamento mais profundo da estrutura sindical?
A retomada é real,
é forte e muitos observadores não a viam porque estavam iludidos pelo próprio
discurso a respeito da crise ou do declínio histórico do sindicalismo. Porém,
se trata de uma recuperação dentro do padrão do sindicalismo brasileiro, isto
é, dentro da estrutura sindical vigente. É difícil saber se tal recuperação vai
transbordar para um sindicalismo de massa como aquele de 1978-1983. No curto
prazo, eu não creio. Na conjuntura de crise da ditadura militar havia uma crise
do regime político que facilitava a ação dos trabalhadores. A retomada das
greves não tem levado ao questionamento da estrutura sindical.
Qual a sua
avaliação a respeito do impacto da reestruturação produtiva no sindicalismo
brasileiro?
Eu penso que esse
impacto foi mal avaliado. Claus
Offe, na Europa, e Leônico
Martins Rodrigues, no Brasil, têm enfatizado a heterogeneização das
classes trabalhadoras nas décadas recentes e apresentam essa heterogeneização
como a causa daquilo que seria um declínio do sindicalismo. Ora, as classes
trabalhadoras sempre foram heterogêneas. A unificação nunca foi e não é
decorrência direta da situação econômica dessas classes. É consequência da
conjuntura econômica, política e ideológica e, é claro, da ação das direções do
movimento operário. Se você ler o livro do historiador Eric Hobsbawm intitulado A era dos impérios, verá
que ele discorre longamente sobre a heterogeneidade da classe trabalhadora no
final do século XIX e início do século XX. Ora, esse foi, justamente, o período
de construção do movimento operário internacional. E, isso, a despeito daquela
heterogeneidade. No que diz respeito aos dias de hoje, é preciso frisar que a
chamada reestruturação produtiva é contraditória: ela estimula novas divisões,
mas também estimula tendência unificadoras; ela heterogeniza e homogeniza.
Criou essa nova e importante divisão entre terceirizados e trabalhadores
diretamente contratados pela empresa e que atuam num mesmo local de trabalho,
mas, também, aproximou muito o trabalhador de classe média do operário. Basta
ver o crescimento do sindicalismo de classe média, particularmente do setor
público. Ademais, as direções sindicais aprendem a lidar com as novas divisões
e dificuldades daí decorrentes. Hoje, já temos no Brasil muita mobilização de
trabalhadores terceirizados, algo que parecia impensável há alguns anos. Fora
do Brasil, o movimento que mais tem lutado contra a nova onda de reformas
neoliberais no caso da Europa é justamente o sindicalismo; na China, o
sindicalismo ainda está nascendo – e podemos esperar que virá forte.
Para finalizar.
Como romper com o sindicalismo de Estado se mesmo correntes sindicais
representativas “aspiram, ainda que no plano do discurso afirmem o contrário, a
tutela do Estado sobre a organização sindical”, como estamos presenciando neste
momento de criação de novas entidades de base nacional?
A destruição da
estrutura sindical corporativa de Estado depende de uma conjuntura política,
econômica e social na qual essa estrutura torne-se instável ou entre em crise.
Enquanto isso não ocorrer, temos de aprender a combater a estrutura
permanecendo em minoria e sem a expectativa de que ela irá desaparecer de um
momento para outro. O que dá para fazer? Dá para travar a luta localizada e dá
para fazer agitação e propaganda contra a estrutura. Vamos considerar as
conjunturas de crise ou de instabilidade que a estrutura sindical já enfrentou
e, depois, o momento atual que é, infelizmente, uma conjuntura de estabilidade
dessa estrutura.
Nem sempre a
estrutura sindical gozou da estabilidade que ostenta nos dias de hoje. Ao longo
da história do Brasil, tivemos duas conjunturas de crise e uma de instabilidade
da estrutura sindical. Esses foram conjunturas em que a derrubada da estrutura
sindical era uma possibilidade real e imediata e que, infelizmente, foram
oportunidades perdidas.
A primeira crise
foi uma crise surgida já no próprio período de implantação da estrutura
sindical na primeira metade da década de 1930. Foi uma espécie de crise do
parto. Para impor a nova estrutura, o recurso que o governo Vargas utilizou foi combinar a
repressão aos sindicatos livres com a criação de atrativos e compensações para
os sindicatos que se oficializassem. Na época, a maior parte do movimento
sindical estava fora do sindicato de Estado e os comunistas e anarquistas se
recusavam, no início, a integrar-se à estrutura nascente. Quando foram
implantadas as férias remuneradas, somente os sindicalizados em sindicatos
oficiais tinham acesso a esse direito. A criação da representação classista, a
partir dos sindicatos oficiais, para a Assembleia Constituinte de 1934, que representou mais um grande
estímulo à oficialização dos sindicatos, e promulgação da Lei de Segurança Nacional de 1935,
que colocou na mira da repressão os sindicatos livres, a resistência comunista
e anarquista foi dobrada. A estrutura sindical nascente começou a se impor.
A segunda crise da
estrutura sindical ocorreu logo após a queda da Ditadura do Estado Novo, quando
se iniciava a Guerra Fria.
Refiro-me à conjuntura de 1948-1952. O governo Dutra, perfilando-se com os EUA
naquele início da Guerra Fria, interveio nos sindicatos oficiais promovendo uma
ampla derrubada de direções sindicais. Os comunistas, expulsos da estrutura
oficial, passaram, então, a praticar o sindicalismo livre. Esse é um período de
muitas greves, de criação de imprensa sindical livre por fora do sindicato
oficial. Conheço dois trabalhos muito importantes sobre essa crise do
sindicalismo de Estado. Uma dissertação de mestrado de Augusto Buonicore, que pode ser
acessada na biblioteca de teses da Unicamp, e que está resumida num artigo do
autor intitulado “Sindicalismo vermelho: a política sindical do PCB entre 1948
e 1952”. O artigo está publicado no periódico Cadernos AEL no12/13 e pode ser
acessado pela internet ([2]). O outro trabalho é um livro de Denis Linhares Barsted, intitulado
Medição de forças – o tempo dos operários navais. Esses dois trabalhos resgatam
a história do sindicalismo livre desse período e evidenciam que os operários
são sim capazes de se organizar sem a tutela, supostamente benéfica, do Estado
capitalista. Contudo, quando Getúlio
Vargas voltou ao poder governamental, ele eliminou, no ano de 1952,
a exigência do atestado de ideologia para os candidatos às direções dos
sindicatos oficiais, reabrindo a possibilidade de os comunistas disputarem as
eleições nos sindicatos oficiais. A linha sindical do PCB começou, então, a
mudar e o trabalho sindical fora da estrutura foi paulatinamente abandonado. É
apenas a partir desse período que a estrutura sindical consegue estabelecer um
vínculo mais significativo com os trabalhadores. Até então, ela era uma
instituição quase que meramente burocrática.
Finalmente, temos
a conjuntura de 1978-1983. Nessa conjuntura, não chegou a se caracterizar uma
crise da estrutura sindical. Ao contrário das duas conjunturas anteriormente
citadas, não havia, então, uma força sindical representativa propondo-se a
derrubar a estrutura sindical. Os então denominados “sindicalista combativos”,
dentre os quais se destacava a liderança sindical emergente do ABC paulista,
nasceram dentro da estrutura sindical e não se propunham a romper com ela; os
setores mais radicalizados das oposições sindicais, embora pleiteassem o fim da
estrutura sindical, não lograram obter influência suficiente no movimento
operário e sindical. Não havia força sindical representativa que colocasse como
objetivo derrubar a estrutura sindical, mas havia sim um divórcio amplo e
crítico entre a massa de trabalhadores em luta e os sindicatos oficiais
burocratizados e controlados por pelegos. É por isso que podemos falar de uma
conjuntura de instabilidade da estrutura sindical. Essa conjuntura foi uma
oportunidade perdida pela direção do novo sindicalismo que surgia no ABC. Se em
1948-1952 a responsabilidade coube ao PCB, nessa nova fase a responsabilidade coube ao novo sindicalismo
e ao partido político ao qual ele estava ligado – o PT.
Hoje, porém,
vivemos um período de estabilidade da estrutura sindical. As condições são
outras e nossa tática deve contemplar isso.
Primeiro, seria
excelente se conseguíssemos criar uma publicação que fizesse a propaganda da
liberdade sindical e produzisse uma crítica multifacetada e fundamentada da
estrutura sindical. Uma publicação como essa seria um importante instrumento de
luta. Para combater a estrutura, temos de combater suas raízes políticas e
sociais. É óbvio que temos de fazer a luta de ideias contra o populismo,
particularmente contra o populismo sindical do qual falei acima. Devemos,
também, se queremos montar uma estrutura sindical livre e ligada ao movimento
socialista, e não uma estrutura sindical para os social-democratas, deveremos,
mesmo aceitando alianças nessa luta, cuidar para erigir uma concepção nossa do
sindicalismo livre.
Há aqueles que
acenam com a crítica de Lênin ao
esquerdismo – participar do sindicato que atrai as massas – para justificar sua
confortável instalação no sindicato de Estado. Temos de fazer esse debate.
Primeiro, quem luta pelo sindicato livre, não está impedido de atuar no
interior da estrutura sindical. Falarei disso mais à frente. Segundo, é claro
que Lênin não chegou a conhecer nada que se assemelhasse ao sindicalismo de
Estado. Ele faleceu quando o fascismo começava, em 1924, a montar o seu
aparelho sindical, até então absolutamente original, na Itália.
Em segundo lugar,
na ação prática, devemos ter claro que na luta contra a estrutura, é preciso
evitar cair na armadilha de substituir a discussão sobre os objetivos pela
discussão sobre os métodos de luta. O que queremos é acabar com a estrutura
sindical. Para alcançar esse objetivo, devemos lançar mão de recursos e métodos
disponíveis em cada uma das situações que podemos nos encontrar – na direção de
um sindicato não oficial (como existem, ainda, no setor público), na oposição a
uma diretoria sindical oficial ou, até, na direção de um sindicato oficial.
Devemos agir tanto por fora, quanto por dentro da estrutura. Não devemos
escolher apenas um método de luta. O importante é saber encontrar em cada uma
das três situações indicadas acima, o método compatível com o objetivo final:
derrubar a estrutura sindical.
Notas:
[1] Armando Boito
Jr. e Paula Marcelino, “O sindicalismo deixou a crise para trás? um novo ciclo
de greves na década de 2000”. Caderno CRH vol. 23 no. 59 Salvador maio-agosto
de 2010. Acessível pela internet no site do Scielo:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792010000200008&lng=pt&nrm=iso
[2] O acesso é pelo endereço:
http://segall.ifch.unicamp.br/publicacoes_ael/index.php/cadernos_ael/article/viewFile/97/104