Entre as
safras de 2003/04 e 2007/2008, vinte e um cortadores de cana morreram em
decorrência de excesso de trabalho nos canaviais paulistas.
Cristina Portella
Lisboa – A utilização do
salário por produção pelas usinas de açúcar e álcool tem permitido às empresas
do setor aumentar a produtividade sem aumentar a remuneração dos trabalhadores.
Desta forma, aumentam a taxa de mais valia extraída na produção, ao mesmo tempo
que provocam o aumento de acidentes de trabalho e de mortes entre o cortadores
de cana. Segundo o Serviço Pastoral dos Migrantes, entre as safras de 2003/04 e
2007/2008, vinte e um cortadores de cana morreram em decorrência de excesso de
trabalho nos canaviais paulistas.
Estas são algumas das
conclusões de um dos trabalhos mais interessantes apresentados ao II Congresso
Karl Marx, da autoria da doutoranda em Sociologia pela Unicamp Juliana Biondi
Guanais. A sua pesquisa de campo foi feita, durante dois anos, de 2008 a 2010,
no interior de São Paulo, junto à Usina Açucareira Ester S. A. e seus
cortadores de cana.
“Quando trabalham por
produção não são raros os casos de cortadores de cana que acabam se exigindo a
ponto de desmaiar durante a jornada de trabalho”, contou Juliana. O
aumento de casos de mortes e de acidentes de trabalho envolvendo
cortadores de cana, especialmente a partir do ano 2000, teria feito com que o
Ministério Público do Trabalho passasse a fiscalizar de forma mais
rigorosa as usinas para verificar se as mesmas estavam cumprindo os
momentos previstos de pausas.
Salário por produção
A partir dos anos 90,
houve uma reestruturação produtiva no setor sucroalcooleiro no Brasil com o
objetivo de aumentar a produtividade e reduzir custos de produção. Um dos meios
privilegiados para atingir esse objetivo foi a adoção de uma forma de
remuneração que estimulasse os trabalhadores a cortar quantidades cada vez
maiores de cana, ou seja, o salário por produção. Já utilizado por muitas
usinas, esse tipo de pagamento generalizou-se e tornou-se predominante no
setor.
“O pagamento por
produção”, explica Juliana, “é uma forma específica de remuneração que está presente
não só no mundo rural como também no urbano, e tem ampla base legal.” “De
acordo com sua lógica”, continua, “a remuneração de um trabalhador é
equivalente à quantidade de mercadorias produzida pelo mesmo. Isto é, o
salário a ser recebido não terá como base as horas por ele trabalhadas,
mas sim a quantidade de mercadorias que serão produzidas no decorrer de sua
jornada de trabalho.” No caso dos cortadores de cana, o ganho por produção
significa que “quanto mais se corta, mais se ganha”.
As consequências
Mas é verdade que
“quanto mais se corta, mais se ganha”? Juliana comprovou que isso só se dá na
aparência, porque, na verdade, quanto mais cana o trabalhador cortar mais o
salário, a saúde e a qualidade de vida do trabalhador vai baixar, enquanto a
jornada de trabalho vai aumentar.
Em primeiro lugar, como
o salário é proporcional à sua produção, o trabalhador tende a trabalhar mais e
com mais intensidade para poder ganhar um salário melhor. Desta forma,
prescinde muitas vezes dos momentos de descanso legal, do horário de almoço,
trabalhando muito mais do que seria razoável para a manutenção da sua saúde.
O mais cruel disso tudo
é que quanto mais baixo é o valor do trabalho mais empenho o trabalhador terá
de ter para conseguir uma remuneração mais adequada. Como já analisara Marx, o baixo
preço do trabalho incentiva o prolongamento do tempo de trabalho. Sendo assim,
os baixos salários são, do ponto de vista das empresas, um elemento essencial
para o aumento da produtividade.
Além disso, o cortador
de cana perde o controle sobre o que produz. “No caso específico dos cortadores
de cana, não são eles próprios que calculam a quantidade de cana que
cortaram num dia de trabalho, já que tal cálculo será feito por um
funcionário da usina”, explicou Juliana.
A ilusão de que, com o
trabalho a peça, é o trabalhador que controla o quanto produz é desmentida
exatamente aí. Mas enquanto os trabalhadores perdem o controle do seu próprio
trabalho, as usinas, pelo contrário, adquirem a noção exata da produtividade e
da intensidade de trabalho cada um de seus empregados.
A média
Mas há outras táticas
utilizadas pelas empresas para aumentar a produtividade e o controle da
produção. Chama-se média e significa a imposição de uma produtividade diária
mínima que, caso não seja atingida, poderá acarretar a demissão do cortador de
cana. “É importante dizer que, com o passar dos anos, a média teve
um aumento considerável”, assegurou Juliana. Segundo as pesquisas feitas, a
média de 5 a 8 toneladas dias obtida em 1980 passou, em 2004, para 12 a 15
toneladas.
Juliana referiu ainda
que esse aumento da quantidade de cana cortada não se deu em consequência
de avanços técnicos introduzidos no setor, mas sim em função de um
dispêndio cada vez maior de energia por parte dos cortadores de cana.
Baseando-se mais uma vez em Marx, a socióloga conclui que o salário por
produção “ao mesmo tempo em que incentiva a intensificação do trabalho e a extensão
da jornada de trabalho, funciona também como um engenhoso método de
interiorização da disciplina e do autocontrole do trabalhador”.
Uma disciplina que não
é colocada à disposição da organização dos trabalhadores, pelo contrário. O
fato de o salário depender da produtividade de cada um reforça as diferenças
individuais entre eles e tem como consequência o estabelecimento da competição
entre os próprios assalariados rurais.
A atualidade das
contribuições de Marx para a economia política são ressaltadas por Juliana em
seu trabalho. “Da mesma forma que os trabalhadores estudados pelo autor
alemão no século XIX, os cortadores de cana brasileiros também recebem de acordo
com sua produtividade individual e acabam arcando com quase todas as
consequências apontadas pelo autor há mais de um século.”