István Mészáros |
István Mészáros (pronuncia-se AFI: [i?tva:n me:sa:ro?]; Budapeste, 1930) é um filósofo húngaro e está entre os mais importantes intelectuais marxistas da atualidade. Professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra, onde ensinou filosofia por 15 anos, anteriormente foi também professor de Filosofia e Ciências Sociais na Universidade de York, durante 4 anos.
Proveniente de uma familia modesta, foi criado pela mãe, operária, e, por força da necessidade, tornou-se ele também trabalhador em uma indústria de aviões de carga, quando mal entrava na adolescência. Com apenas doze anos, o jovem István alterou seu registro de nascimento para alcançar a idade mínima de dezesseis anos e ser aceito pela fábrica. Assim, como homem adulto, passava a receber maior remuneração que a de sua mãe, operária qualificada da Standard Radio Company (uma corporação transnacional estadunidense). A diferença considerável entre suas remunerações semanais foi a primeira experiência marcante e a mais tangível em seu aprendizado sobre a natureza dos conglomerados estrangeiros e da exploração particularmente severa das mulheres pelo capital.
Somente após o final da Segunda Guerra, em 1945, pôde de dedicar melhor aos estudos. Começou a trabalhar como assistente de Lukács no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste, em 1951, e defendeu sua tese de doutorado, em 1954. Mészáros seria o sucessor de Lukács na Universidade, porém, após o levante húngaro de outubro de 1956 e com a entrada das tropas soviéticas na Hungria, exilou-se na Itália, onde lecionou na Universidade de Turim, indo posteriormente trabalhar na St. Andrews (Escócia), onde recebeu o título de Professor Emérito, em 1991.
Autor de obra vasta e significativa, ganhador de prêmios como o Attila József, em 1951, e o Isaac Deutscher Memorial, em 1970, Mészáros é considerado um dos mais importantes pensadores da atualidade. Sua experiência como operário que teve acesso aos estudos, na Hungria socialista, em meio às grandes tragédias do século XX, foi possivelmente determinante para a compreensão da educação como forma de superar os obstáculos da realidade: István assim como Donatella, sua companheira desde 1955, sempre militou em defesa da escola das maiorias, das periferias, aquela que oferece possibilidades concretas de libertação para todos.
Mészáros sustenta que a educação deve ser sempre continuada, permanente, ou não é educação. Defende a existência de práticas educacionais que permitam aos educadores e alunos trabalharem as mudanças necessárias para a construção de uma sociedade na qual o capital não explore mais o tempo de lazer, pois as classes dominantes impõem uma educação para o trabalho alienante, com o objetivo de manter o homem dominado. Já a educação libertadora teria como função transformar o trabalhador em um agente político, que pensa, que age e que usa a palavra como arma para transformar o mundo. Para ele, uma educação para além do capital deve, portanto, andar de mãos dadas como a luta por uma transformação radical do modelo econômico e político hegemônico. Estudioso das obras de Marx, Mészáros alerta que a sociedade só se transforma pela luta de classes, e é necessário romper com a lógica do capital, se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente.
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Programa Roda Viva
Entrevistado: István Mészáros
8/7/2002
O autor que aceitou o desafio de atualizar a obra de Marx fala sobre as
limitações e as possibilidades da esquerda de hoje para defender a democracia e
as liberdades ameaçadas pelo "metabolismo do capital"
Heródoto Barbeiro: Olá, boa
noite!
Ele fez o que alguns filósofos já
pensaram um dia em fazer: retomar a obra de Karl Marx e reescrever O Capital
levando em conta o que acontece no mundo atual. O filósofo de quem nós estamos
falando é tido como um dos mais originais pensadores marxistas da atualidade.
Crítico severo do capitalismo, ele defende a idéia de que é possível construir
uma sociedade pós-capitalista livre das maldades do capital e também do
capitalismo. No centro do Roda Viva esta noite, o filósofo húngaro István
Mészáros, professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra. Formado
em filosofia em Budapeste em 1954, István trabalhou com o renomado filósofo
húngaro Georg Lucáks [(1885-1971), considerado por muitos o fundador do marxismo
ocidental] e depois deu aulas em universidades da Itália, da Escócia, do Canadá
e da Inglaterra. [Heródoto Barbeiro passa a falar em off com imagens do livro
de Mészáros, Para além do capital] O professor István Mészáros já escreveu
vários livros, traduzidos em vários países. Nos últimos anos, concentrou seus
estudos e análises nas questões sociais do mundo globalizado e nos mecanismos
de funcionamento do capitalismo. Esse trabalho resultou em um livro de 1200
páginas, que ele acaba de lançar no Brasil, cujo título é Para além do capital.
O prefácio lembra que "vivemos em uma época de crise histórica sem
precedentes" e que "a saturação do sistema de capital criou sérios
dilemas". O livro é uma dura crítica ao capital e ao capitalismo e procura
afirmar a idéia de que o mundo pode abandonar o modelo de globalização
neoliberal e encontrar um caminho alternativo através de um socialismo
renovado. [volta a imagem de Heródoto Barbeiro] E, para entrevistar o filósofo
húngaro István Mészáros, nós convidamos: o sociólogo Emir Sader, professor,
doutor e coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro; o professor Ricardo Antunes, professor titular de
sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp; conosco,
também, o ensaísta Carlos Nelson Coutinho, que é graduado em filosofia e é
titular em teoria política na Universidade Federal do Rio de Janeiro; o
economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp e editor da revista
Carta Capital; a professora de sociologia Maria Orlanda Pinassi, da Unesp,
Universidade Estadual Paulista; e o jornalista Haroldo Ceravolo Sereza,
jornalista do jornal O Estado de S. Paulo. O programa Roda Viva, como você
sabe, é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e,
também, para Brasília. O Roda Viva hoje é um programa gravado [letreiro na
parte inferior do vídeo indica: "Programa gravado 12.06.2002"] e, por
isso, você não vai poder fazer perguntas, como normalmente você está
acostumado. Professor István, boa noite. [marxismo]
István
Mészáros: [cumprimenta balançando a cabeça]
Heródoto
Barbeiro: Professor, eu gostaria de perguntar inicialmente, para o senhor,
o seguinte: este ano, nós vamos ter eleições no Brasil, vamos escolher o novo
presidente da República do Brasil. Pelo menos três partidos políticos
brasileiros, ou quatro, dizem que são partidos socialistas. Então, eu gostaria
de perguntar ao senhor o seguinte: primeiro, o que é um partido socialista? E
segundo, o que é que o programa desse partido tem que ter para, na sua opinião,
ser um partido socialista?
István
Mészáros: É uma pergunta difícil. Em parte, depende da situação, das
circunstâncias. O ideal seria que os partidos socialistas seguissem a
perspectiva de uma transformação radical, porque muita coisa precisa ser
mudada. Nossa sociedade precisa ser mudada de alto a baixo. Por essa razão,
partidos que queiram ter sucesso precisam ter programas radicais de longo
alcance. Ao mesmo tempo, eles operam numa situação histórica específica e precisam
agradar os militantes, assim como os eleitores. Dentro desse modo ideal de
apresentar os problemas, precisam encontrar alguma forma para transformar o
presente e caminhar na direção do futuro. Na verdade, o subtítulo do meu livro
é Por uma teoria da transição. Tenho plena consciência de que não podemos
passar desta sociedade para uma outra sociedade que seja viável. Precisamos
encontrar as ligações, os meios que tornem a transformação praticável. Por isso
também falo de transição. Partidos socialistas do Brasil ou de qualquer outro
país... Não acho que as diferenças de nacionalidade tenham muita importância no
tocante a essa questão. Em outro aspectos sim, mas nessa questão se o alvo da
transformação social for radical e de longo alcance, todos terão de se orientar
para esse alvo e encontrar os pontos de contato e de alavancagem com o
presente, para que esse processo tenha continuidade.
Heródoto
Barbeiro: Professor Emir Sader.
Emir
Sader: Professor Mészáros, uma distinção essencial na sua obra é aquela entre
capital e capitalismo. Limites diferenciados entre um e outro. Na sua visão, os
chamados Estados socialistas que desapareceram recentemente [após a queda do
Bloco Soviético, ou "queda do Muro de Berlim", em 1989] teriam
rompido com o capitalismo, mas não com o capital. Eu queria saber o que seria
necessário para romper com o que o senhor chama de "metabolismo do
capital"? [processo pelo qual o acúmulo permanente de capital induz
transformações na sociedade e na natureza; conceito aparentado com o de
"metabolismo social" de Marx, mais genérico, que se refere ao
processo de transformação da natureza e da sociedade pela ação da própria
sociedade em geral] E, particularmente, no caso da União Soviética, de que
forma ela induziu, na sua visão, esse metabolismo? Desde o começo, quando o
[Vladimir] Lênin [(1870-1924), líder da Revolução Russa de 1917 e chefe de
governo da Rússia de 1917 a 1922] definiu o socialismo como a industrialização
mais sovietes [conselhos de operários]; ou quando definiu a NEP [Nova Política
Econômica (1921-1929), que fez uma pequena abertura aos negócios privados para
evitar o colapso econômico do país]; ou quando o [Josef] Stálin [(1878-1953),
sucessor de Lênin na União Soviética] definiu a industrialização forçada; ou se
desde o começo, por ser um país periférico, já estava condenado ao metabolismo
do capital?
István Mészáros: O grande
problema na União Soviética foi o atraso da economia, o atraso da sociedade de
modo geral. Na verdade, quando o processo começou, Lênin e os bolcheviques [ala
radical dos comunistas russos, que tomaram o poder em 1917] esperavam que a
Revolução Russa fosse seguida por outras revoluções. O grande atraso da
sociedade pode ser corrigido por essas mesmas sociedades, pela revolução nessas
sociedades, como Alemanha, Inglaterra e outras, que avançaram muito mais na
indústria e na agricultura. Essa foi uma das tragédias da situação histórica.
Os líderes da revolução acreditaram em algo sobre o que não tinham nenhum
controle. Porque, se a revolução nos outros países não acontecesse, como de
fato não aconteceu, o que poderia ser feito? A resposta de Lênin foi uma
resposta quase pessimista. Ele disse: "Não podemos devolver o poder ao
czar [título do monarca que governava a Rússia antes da revolução de 1917]. Temos
de prosseguir como for possível." É uma operação de manutenção, como
costumamos dizer. Uma operação de manutenção, até que a situação se torne mais
favorável e possa prosseguir de certa forma. A posição de Lênin, portanto, não
foi o que se tornou mais tarde a oposição de Stálin, que era construir o
socialismo num único país. É uma idéia fadada ao fracasso. Não é possível
construir o socialismo no mundo, neste mundo tão imenso, com base numa economia
extremamente atrasada. Para Stálin, essa "operação de manutenção"
sugerida por Lênin, que é definida em termos estritamente temporais como um
modelo, foi terrível, pois causou conseqüências em outras direções, para outros
partidos, para todos aqueles partidos que tentaram seguir a linha de Stálin. Se
você admite com honestidade que o que você está fazendo é desenvolver uma
sociedade numa base econômica extremamente primitiva e que há modelos mais
avançados, isso é uma coisa. Se você, ao mesmo tempo, decreta que esse é o
modelo para a transformação socialista, isso só vai causar grandes problemas.
Acho que, quando consideramos esses problemas, eles precisam ser reexaminados
historicamente. Infelizmente, a tendência dos partidos, no contexto em que
operam, é ignorar a dimensão histórica e idealizar a si mesmos. Isso vale não
apenas para o partido de Stálin, mas para muitos partidos do mundo todo,
inclusive alguns que existem ainda hoje. Eu moro na Inglaterra, e os partidos
que governam o país hoje se definem como "novos trabalhistas" e se
idealizam exatamente como costuma acontecer com muita freqüência. Acho que, se
falarmos seriamente sobre a retomada do programa para uma transformação
socialista, e acho que devemos fazer isso, então essa idealização não-histórica
precisa ser abandonada. No lugar dessa idealização não histórica, é preciso
determinar modelos. Porque Stálin não foi o único a determinar modelos. O
modelo imposto na Inglaterra hoje é o modelo do Terceiro Mundo, a terceira
pista, o terceiro caminho. O terceiro caminho como modelo. Meu Deus! Parece uma
piada de muito mau gosto. As alternativas são bastante dramáticas, então você
decide que o modelo é seguir um terceiro caminho. Você não considera nem um nem
outro, mas inventa um terceiro! Retornando à União Soviética, o problema foi
que essa concepção idealizada de um modelo, o modelo stalinista, causou
conseqüências terríveis para outros países, principalmente para a Alemanha,
onde a linha stalinista significava que os adeptos da social-democracia tinham
que ser denunciados como fascistas sociais. Os social-democratas - uma força
socialista em potencial - ficaram contra o consumismo, e vice-versa. E Hitler
se beneficiou muito disso. Eu poderia falar do que houve depois no Leste
Europeu. Houve muitos problemas, porque foram impostos a essas sociedades esse
modelos stalinistas, para os quais havia embasamento na realidade.
Heródoto Barbeiro: Professor
István, já que o senhor tocou na questão da União Soviética, a imprensa
brasileira sempre diz aos brasileiros em geral, sobretudo de uma forma geral,
que o socialismo ou o comunismo acabaram com a queda do Muro de Berlim. E
sempre tomam como exemplo a União Soviética, como o senhor explicou agora há
pouco. É fato mesmo que o comunismo acabou, como insistem alguns setores até da
intelectualidade brasileira e mundial?
István
Mészáros: Depende do que você quer dizer com comunismo. Em primeiro lugar,
para Marx o comunismo era definido como o estágio mais alto do socialismo. Mais
uma vez enfatizo que, historicamente, não é possível saltar para esse nível. É
preciso resolver enormes problemas fundamentais da sociedade. Vem novamente a
questão da transição, como passar de um tipo de sociedade, um tipo de
reprodução social metabólica para outro. Isso deve ser resolvido sob condições
objetivas e também subjetivas. Porque não basta produzir bens materiais, também
é preciso transformar as pessoas. Nesse sentido, o que Marx dizia era que, no
comunismo, o nível mais alto da sociedade, as pessoas que foram educadas nesse
período deveriam produzir segundo suas habilidades e receber da sociedade
segundo sua necessidade. Se você considerar os dois lados dessa equação, você
só pode oferecer, você só pode produzir segundo as suas habilidades se
concordar substancialmente com os propósitos, com os objetivos da sociedade. Se
você não concordar, principalmente se discordar muito, você se recusa a
produzir segundo sua habilidade. E o que você faz? Produz o mínimo, às vezes
nem isso, porque você pode interferir na produção e reduzi-la. E a idéia de
receber segundo a sua necessidade? Mais uma vez, quem vai decidir quais são as
necessidades das pessoas? No sistema stalinista, era uma operação burocrática
que decidia por você, por mim e por todos quais seriam as necessidades
legítimas de cada um. Se você considerar esse tipo de sociedade como comunista,
é claro que isso não existe mais; mas, para mim, essa não era uma sociedade
comunista em nenhuma acepção da palavra. Poderíamos até dizer que ela foi
natimorta, já nasceu morta, por assim dizer, por causa dessas limitações
históricas e outras. Com relação ao colapso do sistema soviético - que é uma
realidade histórica, é um fato -, obviamente algumas pessoas acabaram
concluindo que não havia mais problemas, que era o fim do socialismo ou do
comunismo, que o capitalismo havia triunfado e sempre viveríamos nesse sistema.
Infelizmente, o problema desse tipo de olhar para os problemas é que não vamos
viver muito se seguirmos as imposições do sistema que controla nossa sociedade,
nosso metabolismo social. Por isso, eu afirmo que o socialismo não morreu. De jeito
nenhum. Ele existe como um desafio para o futuro, mas devemos aprender a partir
das terríveis contradições do passado, porque sem isso elas seriam repetidas.
Essa é a razão por que eu passei 25 anos da minha vida escrevendo esse livro:
foi principalmente por causa de uma preocupação com o futuro. Estou convencido
de que os problemas voltarão no futuro e, se não aprendermos com o passado, o
futuro será sombrio, por causa do perigo da autodestruição da sociedade por
causa do poder do capital, da lógica do capital, das imposições objetivas do
capital. A irracionalidade do sistema é tão grande que, se não tivermos
cuidado, se não tivermos uma alternativa para controlar todos os aspectos da
vida moderna, num futuro muito próximo estaremos todos mortos.
Heródoto
Barbeiro: Professor Belluzzo. Sua pergunta, professor.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Professor Mészáros, uma
das características do Marx em O Capital, no meu juízo, é procurar partir da
sociedade tal como ela existe, tal como ela está constituída pelo seu desenvolvimento
histórico. Nesse sentido, o Marx era um revolucionário que queria conservar as
conquistas burguesas, num certo sentido. Ele sempre repete e insiste, tanto nos
manuscritos como em O Capital, a idéia de que, no fundo, ele procura mostrar
que o capitalismo é incapaz de cumprir as consignas da Revolução Francesa [de
1789, pela qual a burguesia chegou ao poder na França]: "liberdade,
igualdade e fraternidade". Que, na verdade, é ao contrário do que nos
aparece, na aparência; no sentido do Marx, o capitalismo é um regime despótico.
Não só despótico, como contraditório. Eu gostaria que o senhor me dissesse como
é que, no seu livro, o senhor desenvolve essa idéia de que é preciso conservar
para fazer a revolução, quer dizer, é preciso conservar os ideais da conquista
burguesa: da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
István Mészáros: Minha
resposta é que devemos manter o que for possível. Mais uma vez, eu iria na
direção das qualificações históricas necessárias, porque o capitalismo do
período em que Marx viveu tinha elementos completamente diferentes. Não é
possível comparar com o capitalismo de hoje. Marx, com muita freqüência,
enfatizava a grande força produtiva do capital e estava convencido que
poderíamos usá-la no futuro e poderíamos crescer com ela. É um processo do qual
podemos adotar muitas coisas e usá-las como base para o futuro. Infelizmente,
desde aquela época, o capitalismo e o capital enfrentaram grandes crises,
crises históricas, e posso lembrar a todos nós que essas crises envolveram duas
terríveis guerras mundiais, duas guerras, devastações. Esse capitalismo não era
o que Marx conhecia. Ele nunca viu nada parecido. A possibilidade de uma guerra
mundial nunca passou pela cabeça dele. Se tivesse passado, ele teria de ter
considerado a razão para isso, o que havia mudado no metabolismo do capital, na
lógica, nas imposições do capital, para produzir essa devastação. Claro que
houve guerras na época de Marx, mas foram guerras menores, você pode chamá-las
até de escaramuças, mas a idéia de uma guerra mundial, da autodestruição
mundial nunca passou pela cabeça de Marx. Eu diria que as mudanças históricas
que aconteceram mudaram muita coisa para nós, inclusive com relação ao que
podemos adotar, ao que podemos manter disso tudo. Para dar alguns exemplos, os
elementos de destruição na produção de capital - o capital é produção, mas há
também a produção de capital, a expansão do capital. Esses elementos são tão
grandes hoje, que o sistema é esbanjador, imensamente esbanjador. Esbanjar é
uma característica da nossa vida. E por quê? Por causa da forma como o sistema
funciona hoje. A produção militarista, na época de Marx, não existia. Acho que
é uma das maiores considerações que devem ser feitas.
Luiz
Gonzaga Belluzzo: É claro. Mas o senhor cita vários trechos dos Grundisse
[Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, ou Elementos fundamentais para
a crítica da economia política, manuscritos de Marx completados em 1858 e
publicados em 1941], em que o Marx aponta nessa direção, no caráter não só
contraditório, como também autodestrutivo do capitalismo. E destrutivo, na
verdade, do seu ambiente, da vida das pessoas etc. Quer dizer, isto está posto
como uma possibilidade - inclusive, da destruição das suas próprias bases de
produção, que é o trabalho livre.
István Mészáros: Tem razão,
ele tinha consciência dessas tendências destrutivas. Elas estavam presentes,
mas hoje não são tendências para o futuro, são realidades brutais, maciças do
presente. Com isso, fica muito difícil manter a atitude positiva que ele teve.
Eu já citei várias vezes as palavras de um grande economista político liberal,
[Joseph] Schumpeter [1883-1950]. Falando da questão de produção e destruição,
ele diz que, sob o capital, existe destruição, sim, mas ela é produtiva, é
positiva. Nossa realidade é que tanta coisa do que precisa ser produzido, uma
boa parte da produção que existe hoje é destrutiva no sentido direto da
palavra. Porque, se formos considerar os recursos que nós desperdiçamos na
produção militarista, eles são astronômicos. Na época de Marx, esses gastos
eram ninharia comparados aos de hoje. Isso precisa ser radicalmente alterado,
com relação a uma perspectiva do futuro. E não será fácil, porque a produção
militarista também é poder político-militar.
Heródoto
Barbeiro: Haroldo.
Haroldo
Ceravolo Sereza: Professor Mészáros, o senhor estava falando de
militarização. O fim da Guerra Fria [(1945-1991), estado de beligerância entre
Estados Unidos e União Soviética que alimentou várias guerras ao redor do
mundo] não pôs nenhum tipo de freio na corrida armamentista. Na verdade, o que
a gente vê hoje, é que essa corrida atinge países que, inclusive, estavam fora
do eixo do confronto entre o sistema soviético e o grupo capitalista. Por que o
senhor acha que não houve nenhum tipo de diminuição do investimento em
armamento? Qual a importância das forças armadas na política, no jogo político
atual?
István
Mészáros: Acho que a maior questão não é o militarismo, quando falamos de
produção militarista. Não é o militarismo por si só. Em poucos lugares do mundo
vimos essa transformação da produção militarista em ditaduras militares.
Infelizmente, aconteceu no Brasil. A ditadura [no Brasil, de 1964 a 1985],
pouco tempo atrás, foi uma expressão disso. A América Latina viu diversos casos
como esse, e muitos foram bastante violentos, mas, considerando as potências
envolvidas - os Estados Unidos, a Inglaterra, a França etc -, a questão é
principalmente econômica, não político-militar. É econômica porque a economia
capitalista precisa desse tipo de produção militarista, o que nos leva a um
conceito que não podemos ignorar, que é o índice de utilização dos bens que
produzimos. Uma característica do desenvolvimento capitalista do século XX foi
a redução dos índices de utilização. Então, vem o produto ideal. Em se tratando
de bombas nucleares, você pode investir muita riqueza humana nelas sem jamais
usá-las. Então, o ideal para o capital, de certa forma, seria abandonar suas
contradições e dificuldades, reduzindo a zero os índices de utilização. Se isso
fosse possível, não haveria limite para a expansão da produção. Essa é uma
noção muito ingênua, porque os recursos não são infinitos, eles são finitos, e
a expansão do capital ao lado da produção ilimitada, tem uma contradição
terrível, que engloba também a dimensão militar. Mais um vez, é uma
qualificação histórica, porque, recentemente, vimos grandes mudanças na forma
como as forças políticas e militares foram realinhadas. O imperialismo da época
de Lênin era caracterizado por uma multiplicidade de países e forças
imperialistas rivais. Isso continuou acontecendo até a Segunda Guerra Mundial
[1939-1945]. Hoje, não é esse o caso. Hoje, o imperialismo não pode ser uma
multiplicidade de países, de potências em competição. Existe apenas uma
potência que pode impor seus interesses militares ao resto do mundo. Trata-se,
evidentemente, dos Estados Unidos. Os outros... A Inglaterra tem sua bomba
nuclear, mas de quem é o dedo que controla o acionamento da bomba? É dos
americanos. São armamentos nucleares que existem graças aos americanos. Os
franceses têm armas nucleares, mas chegam a ser ridículas em comparação com as
outras. É uma situação em que uma potência militar específica pode impor
conclusões políticas e militares. Eu escrevi em outro livro, um livro menor,
que o futuro do controle do poder será a extorsão nuclear. No passado, tivemos
o que foi chamado de diplomacia do canhão. As potências militares alinhavam
seus canhões e, ou os usavam para controlar algumas áreas, ou simplesmente
ameaçavam usá-los, porque essa "diplomacia do canhão", com
freqüência, dava resultados. Eles não precisavam usar as armas, bastava
ameaçar. Hoje, estamos num estágio em que a "diplomacia do canhão",
em sua forma mais perigosa, adentrou nosso horizonte e não podemos nos iludir a
respeito. Porque os Estados Unidos decretaram, no dia 30 de setembro [de 2001],
que têm o direito de invadir militarmente qualquer país, mesmo aqueles onde
eles não mantenham bases militares. Não é uma doutrina bem aceita. Foi aceita
nos Estados Unidos, mas não sei se os outros países aceitaram. Esse é um lado
do problema. Ao mesmo tempo, eles fizeram, recentemente, o anúncio de sete
alvos para ações de prevenção nuclear, por assim dizer. Guerra nuclear se for
necessário. Esses sete alvos já constituem o que eu chamo de chantagem nuclear.
Porque esses alvos que, se não se comportarem de uma outra maneira, podem ser
atingidos pela guerra nuclear, são alvos muito importantes. Contemplar a
intervenção nuclear no nosso mundo é absolutamente horrendo. Recentemente, o
Paquistão e a Índia entraram em confronto [após um atentado ao Parlamento
indiano, em dezembro de 2001, houve uma crise entre os dois países que quase
degenerou em conflito militar e provocou medo, no resto do mundo, de uma guerra
nuclear entre eles]. Ambos têm armas nucleares, e a possibilidade de combate
nuclear também existe lá. Você tem, então, uma perspectiva, caso seja esse de
fato o caminho escolhido - o uso das armas nucleares -, que afeta todo o resto
da humanidade. Os detritos nucleares desconhecem fronteiras. Esse é o grande
problema para o futuro. O capital precisa desse tipo de desenvolvimento
econômico que contemple índice zero de utilização. Não interessa ao capital a
forma como os bens produzidos são usados pelo homem. O domínio do valor de uso
pelo valor de troca é tão alto que é suficiente, para o capital, produzir valor
de troca e continuar com a produção de outros valores de troca. Não é preciso
usar os bens. Em princípio, depois que alguns bens são vendidos, o processo de
realização do capital já se estabeleceu. É um sistema absurdo. Você desperdiça
um volume imenso de recursos humanos que são muito necessários neste mundo, em
todos os lugares. Na América Latina, no Sudeste Asiático, na África. Eu diria,
inclusive, nos países capitalistas mais desenvolvidos, onde a pobreza está
aumentando. A pobreza está aumentando e isso precisa ser admitido nas
estatísticas oficiais. São esses os problemas que enfrentamos; e isso, em
escala colossal, é, infelizmente, a nossa realidade.
Heródoto
Barbeiro: Professor Mészáros, vamos agora a um intervalo. Nós vamos a um
intervalo. Nós estamos conversando aqui com o professor István Mészáros,
filósofo húngaro, e já, já nós voltamos com o Roda Viva.
Heródoto
Barbeiro: Bem, nós voltamos com o Roda Viva, entrevistando hoje o filósofo
húngaro István Mészáros, autor do livro Para além do capital, uma tese em
defesa da idéia de que é possível encontrar uma alternativa ao capitalismo. O
Roda Viva de hoje é um programa gravado, não é o tipo com o qual você está acostumado;
por esse motivo, então, você não pode fazer perguntas, como faz normalmente. Eu
gostaria de passar a próxima pergunta para o professor Ricardo Antunes.
Professor.
Ricardo Antunes: Obrigado. Eu queria aproveitar, professor István
Mészáros, esta temática e lhe fazer uma pergunta. O século XXI começou de modo
muito turbulento e ele talvez possa ser datado, seu início, em 89, com o fim da
União Soviética; em 99, com o Seattle, com o início da batalha de Seattle
[protestos contra a globalização na ocasião da reunião ministerial da
Organização Mundial do Comércio (OMC) em novembro de 1999, em Seattle, Estados
Unidos, que se reuniram dezenas de milhares de pessoas e que degenerou em um
confronto com a polícia e na decretação do estado de emergência na cidade],
depois Nice [protestos anti-globalização na ocasião da reunião da União
Européia, em dezembro de 2000], Praga [no congresso do Fundo Financeiro
Internacional e do Banco Mundial, em setembro de 2000], Gênova [no congresso do
G-8, em julho de 2001], [o primeiro] Fórum Social Mundial [em fevereiro de
2002, em Porto Alegre], digamos assim, as manifestações contra o sistema global
dominante; e também com o 11 de setembro [de 2001, o atentado terrorista que
destruiu os edifícios do World Trade Center nos Estados Unidos]. Eu
perguntaria: qual desses três momentos de algum modo - ou outro - sinaliza o
início do século XXI? Gostaria também de perguntar o papel do Estado: 11 de
setembro, o significado disso, que o senhor já tratou um pouco nas primeiras questões...
Isso sinaliza um fortalecimento, um definhamento, uma alteração do papel do
Estado, tanto nas economias centrais quanto nos países do sul. Então, a
primeira questão: o que sinaliza o século novo? Essas datas ou algo... E, um
pouco, o papel do Estado.
István Mészáros: O papel do
Estado é imenso na nossa sociedade. É preciso constrastar isso com a fantasia
neoliberal que reduz os limites do Estado. Ao contrário, os limites do Estado
vão no sentido oposto. O papel do Estado, o poder do Estado é total, e essa é
uma questão histórica importante. No início do desenvolvimento capitalista, na época
de Henrique VIII na Inglaterra [rei do país de 1509 a 1547], o próprio Marx
enfatizou que Henrique VIII deu uma tremenda ajuda ao desenvolvimento do
capitalismo e classificou esse fenômeno como "ajuda alheia". Não
exatamente para a natureza do capital que pode operar com esses mecanismos
econômicos até certo ponto, mas a intervenção política, o poder político do
Estado, é incontestável, é óbvio, é inegável, com Henrique VIII. Isso foi muito
importante para o desenvolvimento do capitalismo. Depois, veio a fase clássica.
O setor político foi deixado em segundo plano. O próprio Adam Smith
[(1723-1790), economista e filósofo escocês, considerado pai da economia
moderna] falou nesses termos, condenando os políticos. Porque ele considerava
isso um estorvo e uma interferência de que deveríamos nos livrar e usar o
mercado, que é basicamente caracterizado como a "mão invisível"
[expressão cunhada por Adam Smith]. É uma expressão bonita. A mão invisível
controla tudo, não é preciso ter a mão visível dos políticos. Foi isso que
mudou no século XX, porque o poder do Estado é vital, e foi vital desde o
início do século XX, e está crescendo cada vez mais. Essa "ajuda
alheia", que foi apenas o empurrão inicial - e depois o capital seguiu sua
própria lógica e sua própria força para se impor - não é mais suficiente. É um
desenvolvimento regressivo na história do capitalismo e na história do capital.
Para o futuro, é um grande aviso, porque o Estado está envolvido de todas as
formas possíveis, dando garantias políticas e militares por um lado, e, por
outro lado, concedendo fundos astronômicos para iniciativas capitalistas. Eu
sempre digo que o sistema capitalista não sobreviveria uma semana, talvez nem
sequer um dia, sem esse envolvimento ativo do Estado.
Heródoto
Barbeiro: Professor István já que o senhor falou da participação do Estado,
enquanto o senhor falava, eu pensava um pouco em Cuba. Minha pergunta: o que
existe em Cuba é de fato socialismo? E o que vai acontecer depois que o Fidel
Castro [chefe de Estado de Cuba de 1959 a 2008] morrer?
István Mészáros: A segunda
questão é muito difícil de prever. A primeira é muito fácil. Não poderia haver
socialismo em Cuba. É um país dominado por forças muito hostis, que precisa
simplesmente sobreviver - e sobreviveu por 43 anos. Esse é o seu grande feito.
Por um lado, é um feito negativo. Se isso vai continuar com os sucessores de
Fidel Castro é uma grande interrogação. São muitos pontos negativos atuando
contra isso. E não apenas pelas dificuldades internas de produção. O socialismo,
num país como Cuba, uma pequena ilha, como pode existir socialismo num único
país, se ficou inconcebível na União Soviética ou num país do tamanho da China,
com mais de um bilhão e 300 milhões de habitantes? Como seria com dez milhões?
Como estabelecer o socialismo nessas circunstâncias? Também precisamos falar do
poder militar crescente e mais agressivo dos Estados Unidos. Um dos Estados
denunciados pela administração [George W.] Bush é justamente Cuba. Eles não
querem que Cuba, que consideram como um quintal deles, continue dessa forma. É
óbvio que existe um grande perigo. Ou pela desintegração interna da economia e
introdução cada vez maior de forças capitalistas, a situação vai tomar outro
rumo, ou pode haver outra intervenção militar. Eu não ousaria excluir essa
possibilidade. Porque chegamos a um estágio do desenvolvimento histórico em que
o conceito de terrorismo se ampliou muito. Tudo poder ser incluído nesse
conceito, e Cuba ser considerado um Estado terrorista. A questão é saber
quando. Há pouco tempo, um artigo publicado por um político importante dos
Estados Unidos já tentava usar o poder americano nesse sentido, dizendo que
Cuba fornece armas biológicas para Saddam Hussein [ditador do Iraque de 1979 a
2003, contra o qual os EUA fizeram duas guerras, em 1990 e em 2003] e não sei
quem mais. E que evidências ele apresentava? Dizia que a atividade médica em
Cuba é altíssima, não podemos negar isso. Cuba tem uma produção médica muito
sofisticada. Com isso, ele chegou à conclusão que Cuba estava produzindo armas
biológicas. Essas pessoas não têm moral, não têm escrúpulos. Elas enfrentam
problemas e acham que dessa forma burra e agressiva vão eliminar o problema e o
outro país vai deixar de existir.
Heródoto
Barbeiro: Professora Maria Orlanda.
Maria
Orlanda Pinassi: Professor Mészáros, nesse seu livro, Para além do capital,
o senhor retrabalha a questão do totalitarismo. O senhor coloca o totalitarismo
não como um fenômeno que surge em determinados momentos da história do capital
como um momento necessário para colocar ordem na casa, mas como uma essência
permanentemente colocada pelo capital, uma necessidade do próprio capital de se
reproduzir dessa forma totalitária. Dessa forma, eu gostaria de perguntar para
o senhor se a relação entre capital e democracia é uma contradição ou é uma
falácia?
István
Mészáros: É uma grande contradição. Porque o capital é um modo abrangente
de controle da nossa vida. Nossa produção deve ser controlada pelo capital em
todas as dimensões. Na economia, na política, na cultura, até mesmo na
religião. A religião não está isolada das exigências do capitalismo. Nesse
sentido, ele é totalitário. No que se refere à democracia, isso se apresenta
com muita clareza. A democracia pode ser permitida em alguns países, sob
determinadas condições. A democracia é uma exceção para o capital. A grande
maioria dos países do mundo não tem democracia, tem ilusões de democracia, ou
democracia de propaganda, mas sem instituições verdadeiramente democráticas.
Alguns têm uma situação limítrofe. Têm um governo democrático por um tempo,
mas, quando a sociedade entra em crise, o lado autoritário do processo se
estabelece. Basta lembrar [Salvador] Allende no Chile [foi presidente
socialista do país de 1970 a 1973 e deposto por um sangrento golpe militar], ou
seu próprio país, ou a Guatemala [que viveu uma guerra civil de 1960 a 1996,
durante a qual ocorreram golpes militares, como os de 1982, 1983 e 1993, e
genocídio de índios, denunciado por Rigoberta Manchú, prêmio Nobel da Paz em
1992]. São muitos exemplos, e o mesmo vale... Suharto [presidente da Indonésia
de 1967 a 1998]. Que grande democrata! Manteve por 32 anos uma ditadura
terrível como representante do mundo livre e da democracia. É um insulto ao
intelecto, um insulto à razão ter esse tipo de distorção. A democracia é muito
problemática. Eu gostaria de salientar uma outra dimensão. Recentemente, por
causa da crise estrutural do capital - não a crise conjuntural, mas a crise
estrutural -, legislações autoritárias tornaram-se parte integral de todos os
Estados, mesmo nos países capitalistas mais avançados e naqueles que se
consideram democracias liberais. Mais uma vez, vamos lembrar o que houve no
governo de Margaret Thatcher [primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990]
na Inglaterra. Inúmeras medidas autoritárias contra o operariado foram agora
mantidas pelo novo governo trabalhista. Algumas ficaram até piores. A
democracia é problemática. Ela corre perigo. Vai depender das condições da
expansão do capital se esse luxo da democracia pode ou não ser permitido.
Países muito desenvolvidos, como a Alemanha, tiveram uma fase totalmente
fascista [entre 1934 e 1945, sob Adolf Hitler]. O mesmo vale para a Itália [de
1922 a 1945, sob Benito Mussolini]. Houve muitos problemas no mundo todo. Não
vamos idealizar os Estados Unidos como um país democrático. Ele funciona como
tal, porque existem dois partidos que são idênticos [o Republicano e o
Democrata]. Você elege um e, depois de um tempo, elege outro. É a velha troca
do seis por meia-dúzia. Entre um e outro, há continuidade e estabilidade, mas
comparando isso com o movimento trabalhista dos EUA, houve um período de
desenvolvimento muito radical que foi eliminado por métodos extremamente
autoritários. Devemos considerar tudo isso no contexto histórico. Com relação
ao futuro, a democracia corre perigo. Por isso, para nós, é uma obrigação, é
extremamente importante manter solidamente os valores da democracia, e
defendê-la das tendências e forças autoritárias que são inseparáveis do
capital.
Heródoto
Barbeiro: Professor Coutinho.
Carlos Nelson Coutinho: Em toda a sua obra,
István - mas você já se referiu a isso aqui hoje -, você considera que a
revolução socialista ou é mundial, ou é universal, ou não é. E chega a afirmar
- uma afirmação que me parece muito correta - que ou os Estados Unidos são
envolvidos nesse processo ou então o socialismo não será nunca universal. No
prefácio da edição brasileira do Para além do capital, você revela, eu diria,
algum otimismo sobre as potencialidades revolucionárias na América Latina. Como
você sabe - você conhece muito bem o Brasil -, há uma possibilidade concreta de
que o [Luís Inácio] Lula [da Silva] e o Partido dos Trabalhadores [PT] ganhem a
eleição presidencial [ganharam, em 2003]. Se o governo Lula e o PT propuserem realmente
a realização do programa do partido, que ainda é um programa socialista, o que
é possível fazer a partir, digamos, de um país periférico no sentido de
transformações efetivamente socialistas? E eu generalizaria não só para o
Brasil, eu diria: um partido socialista que chegue ao poder em algum país, não
só da periferia, mas do próprio centro do capitalismo, que medidas pode tomar
que sejam efetivamente medidas não de reformar apenas o capitalismo, mas de
construir alternativas ao capitalismo e ao capital?
István Mészáros:
Isoladamente, claro que não. Aqui, a questão será respondida de acordo com as
reações vindas de direções distintas. Para mim, o potencial da América Latina é
imenso, porque os problemas são grandes e graves e não podem ser varridos da
realidade. É uma questão de tempo para que medidas sejam tomadas para remediar
a situação. Mais uma vez, precisamos lembrar que isso não acontece apenas com a
eleição de um partido. A realidade é que, embora outros partidos sejam eleitos,
o capital continua no poder. Os partidos vêm e vão, e mudam, os governos vêm e
vão, e mudam, mas o capital permanece sempre no controle do nosso metabolismo
social. Esse é o desafio; por isso, eu digo que o alvo da transformação só pode
estar além do capital, contra o capital, erradicar o capital e colocar algo
positivo em seu lugar. É claro que isso não se resolve de uma vez, haverá
muitas iniciativas, muitos começos, mas esses começos não serão isolados. A
diferença em relação ao que aconteceu na Rússia em 1917 foi o total isolamento
do país e o cerco a um país do tamanho da Rússia. Foram condições bem mais
favoráveis no tocante ao capital. Até que se acredite na crise estrutural do
capitalismo, para que a relação de forças possa mudar e um passo possa levar a
outro, o futuro do socialismo só pode ser determinado positivamente caso os
países capitalistas mais desenvolvidos se abram para essa transformação. Os
Estados Unidos são um exemplo óbvio, mas isso não vai começar lá. Vai começar
em áreas como a América Latina, onde os problemas são extremamente graves,
assim como os desafios, e espera-se que as forças políticas sejam mais
poderosas para aceitar esses desafios.
Heródoto
Barbeiro: Um esclarecimento ainda da pergunta do professor Coutinho, doutor
Mészáros: caso o Lula venha a ser eleito presidente do Brasil, ele pode sofrer,
por exemplo, o que o Allende sofreu - acabou sendo derrubado do poder? Quer
dizer, esse isolamento que o senhor citou agora há pouco, isso pode ocorrer no
Brasil, caso o Lula venha a ser eleito presidente? Haja vista, como disse o
professor Coutinho, há um programa socialista...?
István Mészáros: Eu temo
que, se ele for eleito, não será recebido com aplauso em Washington. O problema
de como desfazer o que foi feito será real em seu país, assim como para os
outros. Por isso, os problemas só podem ser resolvidos quando há um ímpeto.
Lula tem de enfrentar o outro lado do problema. Sem um movimento social de
massa, sua posição e a das forças socialistas brasileiras não estão garantidas.
Só com forças sociais muito fortes e ativas que não apenas apóiem, mas levem
esses partidos adiante. O parlamento não é uma instituição democrática. É uma
instituição em perigo de extinção, controlada pelo capital. O capital controla
tudo mais; é claro que controla os parlamentos também. É uma força
extraparlamentar por excelência. O capital é a melhor expressão de uma força
extraparlamentar, e só encontra semelhança em outra força extraparlamentar, que
pode estar representada no parlamento, como Lula ou qualquer partido
socialista, mas eles não conseguirão nada sozinhos. Eles só terão sucesso se
forem apoiados e levados a uma direção mais radical pela massa da sociedade
brasileira ou qualquer outra sociedade latino-americana.
Heródoto
Barbeiro: Professor Emir.
Emir Sader:
Professor Mészáros, o seu mestre e grande autor, para os muitos que estão aqui
presentes, Georg Lukács, havia caracterizado a idéia de um período da
atualidade da revolução sobre o Lênin, a partir da Revolução de 17. Por outro
lado, no seu livro Para além do capital, o senhor fala da generalização, da
indução do metabolismo do capital. Até mesmo áreas de resistência como o estado
de bem-estar social, o estado keynesiano [referência a John Mayard Keynes
(1883-1946), economista britânico, um dos pais da macroeconomia moderna, que
defendia o intervencionismo do governo na economia para combater as crises
econômicas; atualmente, o keynesianismo é, às vezes, citado em oposição às
ideologias neoliberais] ou a própria China, são induzidas para uma lógica de mercado
que generaliza as questões de mercado, as relações de metabolismo do capital.
Isso significa que estamos cada vez mais longe do socialismo? O fim da União
Soviética significa que a atualidade da revolução desapareceu? Ela não é mais
atual hoje em dia, ela tem que ser reconstruída, recolocada? O horizonte, hoje,
é um horizonte de outra ordem?
István
Mészáros: Certamente, a China é um problema muito grande. É um problema no
sentido de que as lideranças chinesas tentaram introduzir formas capitalistas para
o desenvolvimento de seu país. Lembro-me de um provérbio citado por Deng
Xiaoping [chefe de governo e de Estado de facto da China de 1978 ao início dos
anos 1990; no seu governo, a China, até então um regime comunista fechado,
começou uma adaptação pragmática à economia de mercado]: "Não importa a
cor do gato, desde que ele pegue o rato." Quer dizer, sendo capitalista ou
socialista, o gato deve pegar o rato e tudo bem. Não sou otimista quanto a essa
visão, porque ela tem perigos inerentes, apresenta becos sem saída. Na China, o
maior problema é o desemprego em massa de proporções cósmicas. Você precisa
analisar a China para poder ser aprovado pela revista London Economist. O
desemprego é de 300, 400, 500, 600 milhões de pessoas. É perturbador, é totalmente
absurdo. A penetração do capitalismo na China até agora ficou estritamente
confinada apenas a regiões costeiras. Em muitos pontos da costa há esses
enclaves. Quando você tenta somar a totalidade da população que vive nessas
áreas e reproduz sua existência em termos capitalistas, não passa de 200
milhões, talvez bem menos do que isso. E estamos falando de um país com mais de
um bilhão e 350 milhões de pessoas, e que continua reproduzindo sua existência
de uma forma que podemos denominar como "da mão para a boca". É uma
relação direta. Aí, existe um problema extremamente grave para o capital e o
capitalismo. O capital tem uma falha histórica, uma grande falha histórica,
cuja importância não pode ser suficientemente enfatizada. Ele não conseguiu
estender seu sistema ao mundo todo. Metade da população mundial não reproduz
suas condições de existência em termos capitalistas. Não é um ato regulado
economicamente. A extração de excedente de mão-de-obra não é regulada
economicamente. Isso vale também na China, até mesmo nos enclaves capitalistas.
Porque os salários miseráveis recebidos nesses enclaves para que você tenha
produtos chineses a preços desprezíveis, todo tipo de produto a preços
irrisórios, para isso, deve-se regulamentar a força de trabalho. O grande elemento
dessa regulamentação não é a economia capitalista, é a política. O comando
político. Nessa grande falha do sistema capitalista, quero acrescentar que o
Sudeste Asiático, China, Índia, também a África e muitos milhões de pessoas na
América Latina estão nessa categoria, sem reproduzir sua existência sob o
metabolismo do controle econômico, que seria o mais favorável ao capital. Isso
já foi enfatizado por Marx. O modo capitalista de desenvolver a economia é o
mais favorável para a produtividade. Falha. Falha total. Não podemos subestimar
a importância disso. E quero acrescentar que não é apenas um fato histórico. É
historicamente inconcebível a reversão desse processo. Não podemos ter o tipo
de desenvolvimento que foi seguido após a Segunda Guerra Mundial. A fantasia da
modernização, resolvendo todos os problemas de todos os países pelas chamadas
modernizações. Instituições de estudos de desenvolvimento foram criadas para
seguir essa idéia fantasiosa. E qual foi o resultado? Não deu em nada. Foi o
colapso total, não há mais a modernização e hoje não há nem propaganda a
respeito. Não sou pessimista com respeito à idéia de ver o capitalismo triunfar
na China. Hoje, ele tem proporções pequenas e, para torná-lo abrangente naquele
país, seria preciso aceitar o terrível desemprego que se criaria no país, o que
eliminaria o governo também. Acho que o governo não seria estúpido a ponto de
escolher esse caminho.
Heródoto
Barbeiro: Nós voltamos com o Roda Viva, hoje entrevistando o filósofo
húngaro István Mészáros, que lançou no Brasil o livro Para além do capital.
Hoje, você não pode fazer perguntas, como faz normalmente para o Roda Viva,
porque o nosso programa está [sendo] gravado. Professor Mészáros, um rápido
esclarecimento. O senhor usou a expressão “socialismo Mickey Mouse”. O que é um
"socialismo Mickey Mouse"?
István
Mészáros: Social-democratas. Na Inglaterra, eu escrevi, eu dei uma
entrevista e surgiu a questão. Estávamos falando não só dos partidos
social-democratas ingleses, mas também de outros países da Europa. É o
“socialismo Mickey Mouse”, porque abandonou tudo que tinha a ver com
socialismo. Antes eles diziam que com pequenos passos chegariam ao socialismo.
É uma fantasia. Hoje, já nem se fala em pequenos passos. Eles abandonaram
também a idéia da reforma. Não se questionam reformas estruturais em nenhum
partido social-democrata europeu. Só posso chamar isso de “socialismo Mickey
Mouse”, porque eles se denominam - inclusive o novo Partido Trabalhista inglês
- partidos socialistas. Socialista? Meu pé é muita mais socialista que o
Partido Trabalhista inglês. É preciso haver critérios para julgar isso. Mickey
Mouse pode se comportar assim. Quando dei essa entrevista estava sendo
inaugurada na França o equivalente à Disneylândia na França [o Euro Disney, ou
Disneyland Resort Paris]. O Mickey Mouse estava em evidência e os partidos
social-democratas estavam aplaudindo esse tipo de desenvolvimento como solução
para os problemas da humanidade. Para mim, é um insulto à humanidade pensar
nesses termos. Para os desenhos animados, tudo bem!
Heródoto
Barbeiro: Professor Belluzzo.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Professor Mészáros,
lendo o seu livro e ouvindo as suas respostas, a questão que mais preocupa é a
das relações atuais entre o capitalismo e a democracia. O senhor faz um
apreciação um pouco, ao meu juízo, injusta com o pós-guerra [a partir de 1945].
Porque no pós-guerra, do meu ponto de vista, a luta política, a luta dos
subordinados, dos submetidos, conseguiu avanços importantes do ponto de vista
da democracia social, econômica e mesmo política. E, no entanto isso submergiu
na crise dos anos 70 e os partidos socialistas foram impotentes para reinventar
uma estratégia que pudesse dar segmento às vitórias que foram conquistadas no
pós-guerra. E, hoje, nós estamos numa situação muito pior. Às vezes, quando o
senhor responde, me dá uma certa ansiedade, porque eu imagino que nós estamos
condenados ao imobilismo. Quer dizer, no fundo, o senhor, ao acentuar
corretamente o caráter despótico, totalitário do regime metabólico do capital,
o senhor nos diz: "Não, a luta é de classes, a luta é política, não tem
chance de romper essa barreira inexpugnável."
István Mészáros: Analisando
o desenvolvimento do capitalismo no pós-guerra, o que você disse é verdade.
Houve muita expansão da produção capitalista, do consumo e também a introdução
do estado do bem-estar social. Foi um acontecimento significativo. Sou o último
a negar isso. Na verdade, gostaria que acontecesse em maior escala. Em maior escala
do que conseguimos, mas quero lembrar que isso acabou. Nos países europeus, o
estado do bem-estar social quase não existe mais. Se você for ler sobre o que
está havendo na Itália, com [Silvio] Berlusconi [empresário na área da mídia e
primeiro-ministro da Itáila em 1994-1995, 2001-2006 e desde 2008], seu maior
projeto é aniquilar o que resta do Estado do bem-estar social, tirar os
direitos dos trabalhadores. Ele toma como modelo o que houve no governo
Thatcher e continua acontecendo com Tony Blair [primeiro-ministro trabalhista
do Reino Unido de 1997 a 2007] na Inglaterra. Seu modelo é Tony Blair, por
causa dessa reversão autoritária. Então, o que eu digo é: sim, isso é verdade
até o final dos anos 60. O projeto foi bem-sucedido, mas então James Callaghan
[primeiro-ministro do Reino Unido de 1976 a 1979] declarou que a
"festa" havia acabado. E não era só em relação ao partido dele, que
estava acabando mesmo. O Partido Trabalhista está perto do fim, no sentido que
você disse. Na verdade, ele usou essa expressão até bem ofensiva porque
continuar com o estado do bem-estar social é injustificável. Acabou, fim.
"Apertem o cinto", como eles também costumam dizer, e vamos aceitar a
legislação autoritária contra o operariado. É isso. Em termos históricos, temos
de ir contra essas tendências precisamente para poder reverter o processo. É a
reativação do movimento de massa que, de certa forma, aconteceu na Itália.
Quando Berlusconi anunciou seu plano de liqüidar o artigo 18 do Estatuto de
Proteção aos Trabalhadores na Itália, houve muitas manifestações contra isso.
Houve também uma greve geral e 16 milhões de pessoas participaram. Nunca, no
passado, houve uma greve geral assim, com a participação de 16 milhões de
italianos. Tudo em defesa dos direitos que eles queriam manter. Eu não diria
que a festa acabou, nem que a luta acabou. Ela continua, mas você precisa saber
quais são as forças contrárias. As margens da expansão do capital estão ficando
cada vez mais problemáticas, por isso foram tomadas essas medidas. Eu escrevi
sobre essas tendências autoritárias logo que esse processo começou, em meados
dos anos 70, e falei de Thatcher e outros. Muita coisa foi alcançada, mas o
processo ainda pode ser revertido.
Heródoto
Barbeiro: Pois não, professor.
Ricardo
Antunes: Eu queria que você tratasse um pouco de uma questão que está
presente em seu livro e que parece crucial no mundo contemporâneo. Você trata
da questão do trabalho, mostrando como a precarização não é alternativa e é
preciso pensar numa sociedade do tempo disponível. E esta seria,
digamos, uma nova forma de se pensar uma estrutura da sociedade. E trata,
também, nele - e eu gostaria que você comentasse, ainda que de modo breve -,
como a luta feminina e a questão da mulher tem sido tratada no universo do
capitalismo como uma igualdade formal e que é preciso pensar numa igualdade
substancial. Essas duas questões: a do trabalho, a questão feminina e a questão
ecológica são cruciais para um pensamento transformador hoje, porque são
questões que aparecem com muita intensidade. Eu queria que você tratasse um
pouco da atualidade e do significado que essas questões têm para o socialismo
no século XXI.
István
Mészáros: Sim, eu entendi. O problema da precarização e do desemprego
talvez seja o maior em termos de perigo imediato. Ele pode causar explosão
social, desintegração social, porque o número de pessoas desempregadas no
mundo, pessoas mergulhadas na pobreza, aumenta o tempo todo, inclusive em
países que na América Latina eram considerados modelos para todos vocês, como a
Argentina. Agora, admite-se oficialmente que 51% da população argentina vive na
pobreza. É um dado oficial, eu li nos jornais. Cerca de 28% das pessoas estão
desempregadas. Nenhuma sociedade consegue viver assim. A precarização é
diferente em cada país. Na Inglaterra, para fugir da magnitude do desemprego,
eles mascaram os números, falsificam-nos. A precarização se torna positiva,
porque o trabalho em meio período é positivo, é bom, sobretudo para as mulheres
em especial, que ficam satisfeitas com um salário miserável porque querem ficar
livres do trabalho. Isso é um absurdo de cinismo. A precarização nessa forma
está condenando as pessoas a condições muito precárias, e eu quero mencionar
que, na Inglaterra, se você trabalhar 16 horas por dia é considerado empregado
em tempo integral. No Japão, se você trabalhar 2 horas na última semana do mês,
não entra na lista dos desempregados. Eles são mais espertos que os ingleses.
Não se resolve o problema assim, falsificando os números, criando desemprego em
larga escala. Com isso, em todos os países, o padrão de vida da classe
trabalhadora está caindo, inclusive nos Estados Unidos. O padrão de vida nos
Estados Unidos caiu consideravelmente nos últimos dez ou quinze anos. Quanto às
mulheres, acho essa uma questão muito importante para o futuro, porque afeta
uma das condições absolutas do capital como modelo de reprodução do metabolismo
social, porque é a base da questão da igualdade. Não apenas a igualdade no
sentido que conhecíamos, no sentido que queriam que conhecêssemos, ou seja, o
direito ao voto. Esse também é um desenvolvimento recente, as mulheres não
podiam votar. Na Suíça, isso mudou recentemente. Na Inglaterra, nos anos da
década de 20. Foi sé então que as mulheres puderam votar, mas isso não mudou
muito as condições de existência delas de forma significativa. Você vota, mas é
demitido. Tudo continua na sua vida e até mesmo hoje, na Inglaterra, embora
devesse haver igualdade no trabalho, as mulheres recebem, pelo mesmo tipo de
trabalho que o homem, apenas 70% do que eles ganham. Infelizmente, é um
problema tão grave que não tem solução, porque as condições são tão difíceis
que o capital é incompatível com um sistema igualitário de comandar a
sociedade. O capital é, obrigatoriamente, um sistema de subordinação. O
trabalho precisa estar subordinado estruturalmente ao capital. É um axioma. Se
você operar a partir desse axioma, não pode haver desenvolvimento no campo da
igualdade. Os "socialistas Mickey Mouse", que antes se preocupavam em
prover igualdade de oportunidades, ao contrário de igualdade de resultados,
abandonaram até mesmo essa idéia: não pensam mais em igualdade de forma alguma.
A igualdade é um conceito hostil, e isso é inerente à natureza do capital, ao
tipo de controle que deve ser mantido para comandar a sociedade.
Heródoto
Barbeiro: Alguns colegas do senhor têm usado, e aqui nós temos reproduzido
muito, a expressão "socialismo de mercado". É possível existir
socialismo de mercado?
István
Mészáros: Eu gostaria de ver socialismo e liberdade, mas, quando pensamos
em conceitos como igualdade, liberdade e fraternidade, eles surgiram muito
antes do socialismo. Surgiram na Revolução Francesa. E o que aconteceu com
eles? Foram aniquilados. A liberdade se restringe a poder votar, a poder
colocar um pedaço de papel, a cada quatro ou cinco anos, numa urna eleitoral. É
isso que se considera a sua liberdade. A liberdade é um conceito positivo muito
importante. É a capacidade de perceber nossos dons e nossas aspirações. Isso,
sim, é o que poderíamos considerar liberdade, não aquele pedaço de papel.
Depois das eleições, a maior parte dos partidos, pelo menos os que conheço na
Europa, logo após a eleição começam a descumprir as promessas. Dizem que o
Partido Trabalhista escreve um manifesto e descumpre todas as promessas após as
eleições. Agora, a situação mudou, as promessas são ignoradas antes de fazer o
manifesto. Por isso, todo o processo torna-se extremamente problemático. As
pessoas são convidadas a eleger um governo... Na última eleição na Inglaterra,
a porcentagem foi a mais baixa de toda a história. De toda a história política
inglesa. Isso mostra que as pessoas estão repudiando esse jeito de contornar os
problemas. A democracia é problemática, a liberdade também, e a igualdade é
melhor esquecermos. Nem se menciona.
Heródoto
Barbeiro: Infelizmente, nosso tempo está se extinguindo. Nós estamos
praticando no final do programa. Eu queria rapidamente só pedir ao professor
Mészáros: professor, o nosso tempo está se acabando, tenho muitas perguntas
para fazer ao senhor, mas infelizmente o nosso tempo não é suficiente para a
grandeza do assunto e para a grandeza da sua participação. Apenas para
encerrar, eu gostaria que o senhor rapidamente me respondesse o seguinte: um
país de Terceiro Mundo que depende da importação de capitais para a sua
sobrevivência, pode sair do chamado subdesenvolvimento? Sim ou não?
István Mészáros: Infelizmente, lamentavelmente não. Eles não
importam capital, não conseguem capital. Países do "Terceiro Mundo"
[faz sinal de "aspas" com as mãos] é um conceito problemático. Eu só
uso essa expressão entre aspas, porque não existe o "Terceiro Mundo".
Ele é uma parte subordinada e explorada de um único mundo, em que alguns países
são poderosos e dominam outros. O "Terceiro Mundo" sofre as conseqüências.
O chamado "Terceiro Mundo" [faz novamente sinal de "aspas"
com as mãos]. Importar capital não beneficia o "Terceiro Mundo". A
forma como o capital é exportado das grandes potências para o "Terceiro
Mundo" é muito iníqua. O controle é mantido sempre, e os benefícios para
os países do "Terceiro Mundo" são mínimos. Por isso, temos o
desenvolvimento muito lento que testemunhamos no pós-guerra.
Heródoto
Barbeiro: Professor Mészáros, muito obrigado. Thank you very much.
István
Mészáros: Foi um prazer.
Heródoto
Barbeiro: Obrigado. Bem, o Roda Viva vai ficando por aqui. Eu gostaria de
agradecer também a gentileza dos nossos convidados, que participaram conosco
hoje no Roda Viva. Nós voltamos na próxima segunda-feira, às 10 e meia da
noite, com a sua participação efetiva através da interatividade aqui do Roda
Viva e dizer que este é mais um espaço para o debate de ideias para que a gente
possa conhecer um pouco melhor o mundo, o que é uma das características do
jornalismo público que se faz aqui na TV Cultura. Muito obrigado pela sua
atenção, boa noite e até segunda-feira às 10 e meia!
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