Por Vasconcelo Quadros - iG São
Paulo | 24/02/2014 06:00
Especialista indica que pelo menos 30% de 20 alimentos
analisados não poderiam estar na mesa do brasileiro
Os
indicadores que apontam o pujante agronegócio como a galinha dos ovos de ouro
da economia não incluem um dado relevante para a saúde: o Brasil é maior
importador de agrotóxicos do planeta. Consome pelo menos 14 tipos de venenos
proibidos no mundo, dos quais quatro, pelos riscos à saúde humana, foram
banidos no ano passado, embora pesquisadores suspeitem que ainda estejam em uso
na agricultura.
Em
2013 foram consumidos um bilhão de litros de agrotóxicos no País – uma cota per
capita de 5 litros por habitante e movimento de cerca de R$ 8 bilhões no
ascendente mercado dos venenos.
Dos
agrotóxicos banidos, pelo menos um, o Endosulfan, prejudicial aos sistemas
reprodutivo e endócrino, aparece em 44% das 62 amostras de leite materno
analisadas por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso
(UFMT) no município de Lucas do Rio Verde, cidade que vive o paradoxo de ícone
do agronegócio e campeã nacional das contaminações por agrotóxicos. Lá se
despeja anualmente, em média, 136 litros de venenos por habitante.
Na
pesquisa coordenada pelo médico professor da UFMT Wanderlei Pignati, os
agrotóxicos aparecem em todas as 62 amostras do leite materno de mães que
pariram entre 2007 e 2010, onde se destacam, além do Endosulfan, outros dois
venenos ainda não banidos, o Deltametrina, com 37%, e o DDE, versão modificada
do potente DDT, com 100% dos casos. Em Lucas do Rio Verde, aparecem ainda pelo
menos outros três produtos banidos, o Paraquat, que provocou um surto de
intoxicação aguda em crianças e idosos na cidade, em 2007, o Metamidofóis, e o
Glifosato, este, presente em 70 das 79 amostras de sangue e urina de
professores da área rural junto com outro veneno ainda não proibido, o
Piretroides.
Na
lista dos proibidos em outros países estão ainda em uso no Brasil estão o
Tricolfon, Cihexatina, Abamectina, Acefato, Carbofuran, Forato, Fosmete,
Lactofen, Parationa Metílica e Thiram.
Chuva de lixo tóxico
“São
lixos tóxicos na União Europeia e nos Estados Unidos. O Brasil lamentavelmente
os aceita”, diz a toxicologista Márcia Sarpa de Campos Mello, da Unidade
Técnica de Exposição Ocupacional e Ambiental do Instituto Nacional do Câncer
(Inca), vinculado ao Ministério da Saúde. Conforme aponta a pesquisa feita em
Lucas do Rio Verde, os agrotóxicos cancerígenos aparecem no corpo humano pela
ingestão de água, pelo ar, pelo manuseio dos produtos e até pelos alimentos
contaminados.
Venenos
como o Glifosato são despejados por pulverização aérea ou com o uso de trator,
contaminam solo, lençóis freáticos, hortas, áreas urbanas e depois sobem para
atmosfera. Com as precipitações pluviométricas, retornam em forma de “chuva de
agrotóxico”, fenômeno que ocorre em todas as regiões agrícolas mato-grossenses
estudadas. Os efeitos no organismo humano são confirmados por pesquisas também
em outros municípios e regiões do país.
O
Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), segundo a pesquisadora do Inca,
mostrou níveis fortes de contaminação em produtos como o arroz, alface, mamão,
pepino, uva e pimentão, este, o vilão, em 90% das amostras coletadas. Mas estão
também em praticamente toda a cadeia alimentar, como soja, leite e carne, que
ainda não foram incluídas nas análises.
O
professor Pignati diz que os resultados preliminares apontam que pelo menos 30%
dos 20 alimentos até agora analisados não poderiam sequer estar na mesa do
brasileiro. Experiências de laboratórios feitas em animais demonstram que os
agrotóxicos proibidos na União Europeia e Estados Unidos são associados ao
câncer e a outras doenças de fundo neurológico, hepático, respiratórios, renais
e má formação genética.
Câncer em alta
A
pesquisadora do Inca lembra que os agrotóxicos podem não ser o vilão, mas fazem
parte do conjunto de fatores que implicam no aumento de câncer no Brasil cuja
estimativa, que era de 518 mil novos casos no período 2012/2013, foi elevada
para 576 mil casos em 2014 e 2015. Entre os tipos de câncer, os mais
suscetíveis aos efeitos de agrotóxicos no sistema hormonal são os de mama e de
próstata. No mesmo período, segundo Márcia, o Inca avaliou que o câncer de mama
aumentou de 52.680 casos para 57.129.
Na
mesma pesquisa sobre o leite materno, a equipe de Pignati chegou a um dado
alarmante, discrepante de qualquer padrão: num espaço de dez anos, os casos de
câncer por 10 mil habitantes, em Lucas do Rio Verde, saltaram de três para 40.
Os problemas de malformação por mil nascidos saltaram de cinco para 20. Os
dados, naturalmente, reforçam as suspeitas sobre o papel dos agrotóxicos.
Pingati
afirma que os grandes produtores desdenham da proibição dos venenos aqui usados
largamente, com uma irresponsável ironia: “Eles dizem que não exportam seus
produtos para a União Europeia ou Estados Unidos, e sim para mercados africanos
e asiáticos.”
Apesar
dos resultados alarmantes das pesquisas em Lucas do Rio Verde, o governo
mato-grossense deu um passo atrás na prevenção, flexibilizando por decreto, no
ano passado, a legislação que limitava a pulverização por trator a 300 metros
de rios, nascentes, córregos e residências. “O novo decreto é um retrocesso. O
limite agora é de 90 metros”, lamenta o professor.
“Não
há um único brasileiro que não esteja consumindo agrotóxico. Viramos mercado de
escoamento do veneno recusado pelo resto do mundo”, diz o médico Guilherme
Franco Netto, assessor de saúde ambiental da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz).
Na sexta-feira, diante da probabilidade de agravamento do cenário com o
afrouxamento legal, a Fiocruz emitiu um documento chamado de “carta aberta”, em
que convoca outras instituições de pesquisa e os movimentos sociais do campo
ligados à agricultura familiar para uma ofensiva contra o poder (econômico e
político) do agronegócio e seu forte lobby em toda a estrutura do governo
federal.
Reação da Ciência
A
primeira trincheira dessa batalha mira justamente o Palácio do Planalto e um
decreto assinado, no final do ano passado, pela presidente Dilma Rousseff.
Regulamentado por portaria, a medida é inspirada numa lei específica e dá
exclusividade ao Ministério da Agricultura _ histórico reduto da influente
bancada ruralista no Congresso _ para declarar estado de emergência
fitossanitária ou zoossanitária diante do surgimento de doenças ou pragas que
possam afetar a agropecuária e sua economia.
Essa
decisão, até então era tripartite, com a participação do Ministério da Saúde,
através da Anvisa, e do Ministério do Meio Ambiente, pelo Ibama. O decreto foi
publicado em 28 de outubro. Três dias depois, o Ministério da Agricultura
editou portaria declarando estado de emergência diante do surgimento de uma
lagarta nas plantações, a Helicoverpa armigera, permitindo, então, para o
combate, a importação de Benzoato de Emamectina, agrotóxico que a multinacional
Syngenta havia tentado, sem sucesso, registrar em 2007, mas que foi proibido
pela Anvisa por conter substâncias tóxicas ao sistema neurológico.
Na
carta, assinada por todo o conselho deliberativo, a Fiocruz denuncia “a
tendência de supressão da função reguladora do Estado”, a pressão dos
conglomerados que produzem os agroquímicos, alerta para os inequívocos “riscos,
perigos e danos provocados à saúde pelas exposições agudas e crônicas aos
agrotóxicos” e diz que com prerrogativa exclusiva à Agricultura, a população
está desprotegida.
A
entidade denunciou também os constantes ataques diretos dos representantes do
agronegócio às instituições e seus pesquisadores, mas afirma que com continuará
zelando pela prevenção e proteção da saúde da população. A entidade pede a
“revogação imediata” da lei e do decreto presidencial e, depois de colocar-se à
disposição do governo para discutir um marco regulatório para os agrotóxicos,
fez um alerta dramático:
“A
Fiocruz convoca a sociedade brasileira a tomar conhecimento sobre essas
inaceitáveis mudanças na lei dos agrotóxicos e suas repercussões para a saúde e
a vida.”
Para
colocar um contraponto às alegações da bancada ruralista no Congresso, que foca
seu lobby sob o argumento de que não há nexo comprovado de contaminação humana
pelo uso de veneno nos alimentos e no ambiente, a Fiocruz anunciou, em
entrevista ao iG, a criação de um grupo de trabalho que, ao longo dos próximos
dois anos e meio, deverá desenvolver a mais profunda pesquisa já realizada no
país sobre os efeitos dos agrotóxicos – e de suas inseparáveis parceiras, as
sementes transgênicas – na saúde pública.
O
cenário que se desenha no coração do poder, em Brasília, deve ampliar o abismo
entre os ministérios da Agricultura, da Fazenda e do Planejamento, de um lado,
e da Saúde, do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário, de outro. Reflexo da
heterogênea coalizão de governo, esta será também uma guerra ideológica em
torno do modelo agropecuário. “Não se trata de esquerdismo desvairado e nem de
implicância com o agronegócio. Defendemos sua importância para o país, mas não
podemos apenas assistir à expansão aguda do consumo de agrotóxicos e seus
riscos com a exponencial curva ascendente nos últimos seis anos”, diz Guilherme
Franco Netto. A queda de braços é, na verdade, para reduzir danos do modelo
agrícola de exportação e aumentar o plantio sem agrotóxicos.
Caso de Polícia
“A
ciência coloca os parâmetros que já foram seguidos em outros países. O problema
é que a regulação dos agrotóxicos está subordinada a um conjunto de interesses
políticos e econômicos. A saúde e o ambiente perderam suas prerrogativas”,
afirma o pesquisador Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz. Até novembro de 2012,
durante 11 anos, ele foi o organizador gerente de toxicologia da Anvisa, setor
responsável por analisar e validar os agrotóxicos que podem ser usados no
mercado.
Meirelles
foi exonerado uma semana depois de denunciar complexas falcatruas, com fraude,
falsificação e suspeitas de corrupção em processos para liberação de seis
agrotóxicos. Num deles, um funcionário do mesmo setor, afastado por ele no
mesmo instante em que o caso foi comunicado ao Ministério Público Federal,
chegou a falsificar sua assinatura.
“Meirelles
tinha a função de banir os agrotóxicos nocivos à saúde e acabou sendo banido do
setor de toxicologia”, diz sua colega do Inca, Márcia Sarpa de Campos Mello. A
denúncia resultou em dois inquéritos, um na Polícia Federal, que apura suposto
favorecimento a empresas e suspeitas de corrupção, e outro cível, no MPF.
Nesse, uma das linhas a serem esclarecidas são as razões que levaram o órgão a
afastar Meirelles.
As
investigações estão longe de terminar, mas forçaram já a Anvisa – pressionada
pelas suspeitas –, a executar a maior devassa já feita em seu setor de
toxicologia, passando um pente fino em 796 processos de liberação avaliados
desde 2008. A PF e o MPF, por sua vez, estão debruçados no órgão regulador que
funciona como o coração do agronegócio e do mercado de venenos.