Por JOSÉ
GUERRA, LUIZ FABRE E RENATO BIGNAMI
Detratores do combate ao trabalho escravo alegam falta de clareza
sobre o conceito porque não querem um critério que traga prejuízo
Não é apenas a ausência de liberdade, mas principalmente de
dignidade que faz o trabalho de uma pessoa ser considerado análogo ao de um
escravo. Esse conceito, presente na legislação brasileira, tem sido a base para
garantir a milhares de pessoas neste país o respeito a esses dois direitos
fundamentais.
O trabalho forçado (manter a pessoa no serviço por meio de
fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e
a servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e
prendê-lo a ele) há muito não são mais os únicos elementos que configuram essa
forma de exploração.
Quem procura grilhões dificilmente vai encontrar. O mundo evoluiu,
as maneiras de encobrir o aviltamento do ser humano também. Por que a
legislação tinha que se ater à de maio de 1888?
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, condições degradantes
de trabalho, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais que coloquem
em risco a saúde e a vida do trabalhador, também configuram trabalho análogo à
escravidão. Não é a distância entre camas, a espessura de colchões, a falta de
copos plásticos ou de marmita aquecidas e sim situações que, em conjunto, são
incompatíveis com a dignidade humana.
Tudo isso está normatizado e pode ser encontrado até em um manual
divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Outro elemento são as jornadas nas quais o trabalhador é submetido
a um esforço excessivo, que acarreta danos à sua saúde ou risco à sua vida. Não
é a quantidade de horas, mas a exigência de seu corpo para além dos limites
possíveis.
Não nos admira que dezenas de trabalhadores rurais morram de
exaustão por conta do serviço e há quem os culpe por isso.
A legislação brasileira é considerada de vanguarda pela
Organização Internacional do Trabalho e pela relatora das Nações Unidas para
Formas Contemporâneas de Escravidão. Vale lembrar que as convenções
internacionais das quais o Brasil é signatário afirmam que o consentimento do
trabalhador é irrelevante. Não importa se ele quer ser escravo; um país
minimamente digno não pode permitir que isso aconteça.
O Supremo Tribunal Federal já aceitou denúncias entendendo as
condições degradantes como elementos constituidores do trabalho escravo.
Críticos dizem que a decisão foi obtida de forma apertada. Com base nesse
argumento, podemos então pensar em rever todas as decisões do Supremo que não
foram consensuais. Ou as votações no Congresso Nacional.
Tentando manobras como a de questionar o conceito, os detratores
do combate ao trabalho escravo promovem a "insegurança jurídica" no
campo e na cidade. Afirmam que não há clareza sobre o conceito de trabalho
escravo porque, na verdade, não concordam com um critério que traga prejuízo
econômico para alguns poucos.
Mais de 3.000 estabelecimentos foram fiscalizadas por denúncias de
trabalho escravo desde 1995, quando o Brasil criou o seu sistema de combate ao
crime. Mais de 45 mil pessoas ganharam a liberdade desde então, em um universo
de dezenas de milhões de trabalhadores.
A grande maioria dos empresários segue a lei e não utiliza
trabalho escravo. Ainda que diversas, as condições degradantes de hoje são
equiparáveis aos grilhões da antiguidade, pois reduzem a expectativa de vida de
milhares de trabalhadores que as sofrem diariamente, facilitam o surgimento de
dumping social e criam assimetrias econômicas extremamente perniciosas ao bom
funcionamento do mercado.
Não interessa tornar a legislação mais frouxa. Essa medida apenas
beneficiaria poucos em detrimento da maioria dos cidadãos do país.
JOSÉ GUERRA, 36, é secretário executivo da Comissão Nacional para
a Erradicação do Trabalho Escravo
LUIZ FABRE, 34, é membro da coordenação nacional de erradicação do
trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho
RENATO BIGNAMI, 44, é coordenador do programa de erradicação do
trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego em São Paulo
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