SÃO PAULO - São Paulo se tornou palco de uma romaria de empresários e
analistas de recursos humanos, especialmente das regiões Sul e Sudeste
do país. Desde o começo do ano, mais de 1.300 empresas enviaram
representantes à Igreja Nossa Senhora da Paz, na Baixada do Glicério,
Zona Central da capital paulista e ponto de concentração de migrantes
haitianos e africanos na cidade. Ali, eles estão em busca de mão de
obra. De preferência, boa e barata. Apenas no primeiro semestre, 472
delas já contrataram ao menos 1,4 mil trabalhadores de fora do país.
O movimento é inédito. E impressiona. Em um galpão improvisado da
igreja, convertida numa espécie de agência de empregos, ao menos 200
pessoas esperavam por oportunidades numa tarde do fim de julho. O
anúncio das vagas era feito em inglês, francês e creole, língua nativa
do Haiti. Na sequência, dezenas de imigrantes haitianos e africanos se
lançavam com sofreguidão sobre os representantes das empresas,
acotovelando-se para preencher fichas e lançando carteiras de trabalho
recém expedidas sobre as mesas, sob os olhares satisfeitos — e um tanto
surpresos — de empresários.
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Em igreja, imigrantes são recebidos por empresários e por pessoas que querem contratá-los sem seguir as leis trabalhistas - Fernando Donasci / O Globo |
A seleção dos trabalhadores, por vezes, faz lembrar a escolha feita
por senhores de engenho em mercados de escravos no Brasil, até o século
XIX. No Acre, ponto de entrada de haitianos e senegaleses, segundo
pesquisadores da Universidade Federal do Acre, empresários chegam a
checar os dentes, os músculos e a pele dos imigrantes. Em um vídeo
disponível na internet, um dos recrutadores admite que escolhe os
empregados pela canela. Segundo ele, na seleção de trabalhadores para um
frigorífico, levava em conta “uma tradição antiga, do pessoal da
escravidão, de que quem tem canela fina é bom de trabalho, canela grossa
é um pessoal mais ruim de serviço (sic)”.
“Cursinho para tirar preconceito”
Em São Paulo, o destino dos migrantes depende de caridade. Na
ausência de um serviço público que os encaminhe, o Padre Paolo Parise e
funcionários da Igreja Nossa Senhora da Paz tentam impedir que se repita
na megalópole o que se passa no Norte do país. Três vezes por semana,
uma assistente social contratada pela igreja se reúne com empresários
que pretendem contratar migrantes para uma conversa a que Paolo chama de
“cursinho para tirar preconceito”. Ali, a assistente social Ana Paula
Caffeu faz a propaganda dos haitianos.
— Eles são diferentes da gente. Vão trabalhar felizes, cantando,
enquanto os brasileiros relacionam o trabalho à tortura. Já ouvi
empresários dizerem que a produção aumentou de 15% a 35% depois da
contratação dos haitianos. Os caras são muito bons e aceitam trabalhos
abaixo de sua qualificação porque precisam pagar dívida e mandar
dinheiro para a família — disse Ana Paula, em um dos cursos acompanhados
pelo GLOBO no fim de julho.
Durante a preleção, ela também recomendou aos empresários que
contratassem os imigrantes de acordo com as leis trabalhistas e pagando
ao menos R$ 1 mil mensais. Segundo os cálculos da igreja, isso é o
mínimo necessário para que os migrantes sobrevivam no Brasil e sustentem
suas famílias em seu país de origem.
— Eu tento garantir que eles vão ser bem tratados. Mas aqui dá de
tudo, já chegou aliciador, traficante de pessoas, gente que queria não
um trabalhador, mas um escravo — contou Ana Paula.
Apesar do discurso enfático, nem todo mundo se convence com o que diz
a assistente social. Ao final de uma das palestras, uma dona de casa
que não quis se identificar admitiu à reportagem que procurava por uma
haitiana para convertê-la em empregada doméstica, que dormisse na casa
da patroa durante a semana. Segundo os cálculos da dona de casa, a
empregada teria uma jornada de 12 horas diárias de trabalho. A
empresária Ana Paula Aguiar afirmou que buscava um caseiro para sua casa
de praia no litoral norte paulista. Ela reclamou que “brasileiro é
preguiçoso, se esconde atrás da lei para não trabalhar”.
— Agora é só bolsa disso, bolsa daquilo. Acho que os haitianos seriam
mais bem agradecidos pelo emprego — disse a dona de casa, que não tinha
a intenção de contratar em regime CLT e que não pretendia pagar mais de
R$ 850.
O perfil dos imigrantes que busca vagas na igreja é muito diverso. Há
haitianos sem qualquer escolaridade e nigerianos que chegaram ao país
clandestinos, escondidos em porões de navio, apenas com a roupa do
corpo. Mas há também jornalistas, médicos e engenheiros entre os vindos
do Haiti. O GLOBO localizou ainda um pedagogo e um economista nigerianos
que, por serem cristãos, fugiram da perseguição do grupo extremista
islâmico Boko Haram, o mesmo que, em maio, sequestrou 276 meninas de uma
escola no Norte da Nigéria. Um dos nigerianos, que não quis se
identificar por medo de represálias, teve as duas irmãs mortas num
atentado à bomba em uma igreja cristã no país africano.
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— Eu sei que a gente não está acostumado a ver um galpão cheio de
negões com educação superior, mas deixem qualquer preconceito de lado —
instruía a assistente social durante a palestra.
No entanto, nenhum deles parecia preocupado com a formação dos
futuros empregados, mesmo porque diplomas conseguidos no exterior não
são automaticamente válidos no Brasil.
Terminados os processos de contratação, haitianos e africanos lotam
ônibus estacionados no pátio da igreja em direção a municípios do país.
Vão enfrentar algumas horas de viagem para desembarcar numa nova vida,
em cidades que sequer desconfiam onde fica no mapa.