Tese apresentada na FAU-USP revela como
catadores de região desvalorizada no centro de São Paulo foram capazes de
articular cooperativas, produzir de modo sustentável e conquistar apoio social
relevante
Por Giovanni Santa Rosa, na Agência USP de Notícias
[Título original: "Catadores se organizam
e criam nova forma de uso da cidade"]
Desenvolvimento de possíveis novos modos de produção e
organização em cooperativas que permitiram independência e visibilidade
política: essas são conquistas dos catadores de materiais recicláveis da região
do Glicério, bairro da região central de São Paulo, área que ficou abandonada
por décadas tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada. Segundo
pesquisa da arquiteta Márcia Saeko Hirata, da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo (FAU) da USP, a perda do valor comercial da região permitiu que os
coletores se organizassem e consolidassem sua atuação no local.
A área, estudada por Márcia na tese “Desperdícios
e centralidade urbana na cidade de São Paulo: uma discussão sobre o catador de
materiais recicláveis do Glicério” — trabalho orientado pelo professor Paulo
César Xavier Pereira e defendido em 2011 —, é uma região de várzea que foi
ocupada principalmente por pessoas de baixa renda e operários e também
concentrou atividades religiosas e culturais. Constitui-se, assim, uma situação
peculiar de centralidade: apesar de estar a menos de um quilômetro da Praça da
Sé, no centro de São Paulo, a região possui moradias baratas, como cortiços e
quitinetes, e fácil acesso a trabalhos que exigem pouca qualificação. A
arquiteta tomou a Cooperglicério, cooperativa de catadores fundada em 2006,
como objeto de estudo para reflexão sobre as teorias do filósofo e sociólogo
francês Henri Lefebvre. Ela entrevistou catadores entre 2008 e 2011, para
conhecer suas histórias no centro da cidade. Márcia diz que a obra de Lefebvre
foi essencial para não encarar a questão por um viés do modo de produção
capitalista, mas sim como central a um novo modo de produção.
A organização em cooperativas, junto com a
colaboração de ONGs e o discurso da sustentabilidade trazido pela crise
ambiental, deu força política para catadores permanecerem na área e conseguirem
ser vistos pelo poder público e pela sociedade com outros olhos.
Apropriação do espaço: Ao se organizar em um
contexto de efervescência política, no início dos anos 1980, os catadores
constituiram uma nova forma de apropriação do espaço. Houve o fim da
dependência dos donos de ferros-velhos, que cediam lugar para morar e carroças
para trabalhar em troca de exclusividade sobre o material coletado, por meio da
organização em cooperativas que possibilitaram condições de trabalho e de vida
mais dignas. Eles também passaram a explorar o centro de outra maneira,
circulando e trocando experiências com pessoas em condições de vida parecidas,
o que levou a uma maior consciência política.
Márcia identifica um ponto essencial no
desenvolvimento dessas formas de organização: a ruptura na fórmula trinária
capital-terra-trabalho, que, segundo o filósofo alemão Karl Marx, é a base da
coesão capitalista. Como o Glicério ficou à margem do processo imobiliário, a
terra perdeu importância como valor de troca. Sem interesses comerciais, foi
possível surgir uma nova forma de apropriação do espaço que aponta para um modo
de produção diferente. A arquiteta lembra que, mesmo sem valor de troca, o
centro era, e ainda é, um lugar de riqueza que gera, entre outros, os materiais
coletados pelos catadores.
As novas formas de apropriação do espaço não se
restringiam ao modo de produção: dinâmicas comerciais como a “feira do rolo”,
que deu a origem às feiras de troca solidária, e culturais, como a União dos
Cordelistas e Repentistas do Nordeste, também na região, e que completam o novo
significado dado ao espaço urbano abandonado por investimentos públicos ou
privados.
Márcia destaca duas contribuições de sua
pesquisa: o próprio avanço teórico nas ideias de Lefevbre e a reflexão sobre
como a universidade interage com grupos e movimentos sociais. “Todo esse
conhecimento é o conhecimento dos catadores”, diz a pesquisadora, que ainda
afirma que a presença dos movimentos
sociais na
universidade, apesar de crescente, ainda é pequena.
Nenhum comentário:
Postar um comentário