“A sedução e a rendição política aos quase 100 bilhões de
dólares em exportações geradas pelo agronegócio poderão levar o Brasil a
cenários sombrios de um ‘abismo agrário-ambiental’ já em curso”, lamenta o
engenheiro agrônomo
Uma breve retrospectiva política é suficiente para compreender o
esvaziamento do Incra e a recente proposta da presidente Dilma Rousseff,
de descentralizar as atuais atividades da instituição para melhorar a
infraestrutura dos atuais assentamentos, diz Gerson
Teixeira à IHU On-Line. Na avaliação do governo, não é preciso criar
novos assentamentos, mas melhorar a infraestrutura dos já existentes. Sobre a
possibilidade, o ex-presidente presidente da Associação Brasileira de
Reforma Agrária – ABRA é enfático: “Quem ouviu ou leu o discurso surrado
de que importa doravante a qualidade dos assentamentos, sugiro que adote a
recomendação da presidenta Dilma em relação aos discursos de que os
raios são as causas dos apagões. Ria!”.
Segundo ele, depois de 2002, após receber propostas para dar
continuidade à reforma agrária, “um processo político interno” do PT
“‘tratorou’ a proposta, e naquele momento já foi possível antecipar o futuro da
‘reforma agrária’”. Para ele, a renúncia à reforma agrária teve como propósito “impedir
qualquer movimento sobre temas sensíveis aos ruralistas. Isso ocorreu por temor
infundado de riscos para a base do governo no intuito de evitar qualquer sinal
que pudesse ser interpretado como intimidatório ao avanço do agronegócio que
praticamente se constitua no único setor superavitário na balança comercial do
país”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU
On-Line, Teixeira lamenta a posição do governo federal e enfatiza que
a medida de descentralizar as atividades do Incra “serve para desviar
o foco da questão central da política agrária”. E esclarece: “Os municípios e,
em especial, os menores, além de objeto dos fortes controles das oligarquias
rurais (que obviamente não morrem de amores pela reforma agrária), não dispõem
de estrutura e capacidade de gestão para responderem adequadamente às suas
próprias atribuições originárias. Além disso, muitos desses municípios acham-se
impedidos de receber verbas do governo federal, no caso, em função de problemas
com convênios, passivos previdenciários etc.”
Gerson Teixeira é engenheiro agrônomo, especialista em
desenvolvimento agrícola pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ, e doutorando em
Teoria Econômica pela Universidade de Campinas – UNICAMP. É ex-presidente da
Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA. Confira a entrevista.
IHU On-Line – A presidente Dilma propõe
descentralizar as atividades do Incra e, a partir de investimentos do PAC –
Equipamentos, e pretende fornecer equipamentos para municípios de até 50 mil
habitantes realizarem melhorias nos assentamentos da reforma agrária. Como vê
essa proposta?
Gerson Teixeira – O anúncio da medida, com a ênfase dada à sua suposta virtude,
serve para desviar o foco da questão central da política agrária, na
atualidade, sobre a qual pretendemos comentar adiante. Em tese, claro que é
positiva uma maior cooperação federativa para o atendimento das necessidades de
infraestrutura dos assentamentos de reforma agrária. A articulação operacional
da União com os municípios nessa área já ocorre, porém sob o comando do Incra.
A mudança, conforme se comenta, seria a supressão desse comando com a redução
do papel do Incra (ou Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome –
MDS, quem sabe?) a mero repassador dos recursos.
Não obstante, quando confrontada com a realidade são remotas as
chances de eficácia da proposta de municipalização dessa atividade do governo
federal. Veja que a cobrança e a fiscalização do Imposto Territorial Rural
– ITR foram transferidas para os municípios pela lei n. 11.250/2005. Essa
definição também foi defendida pelo seu suposto conteúdo de racionalidade da
gestão tributária e articulação federativa. No entanto, o que esteve por trás
da decisão foi o empenho da SRF de se livrar dessas atribuições por julgar
o ITR como um “imposto podre”, dada a sua baixa expressão fiscal.
Resultado: em 2003, a arrecadação do ITR, ainda que pífia como sempre,
equivaleu a 0,112% das receitas administradas pela SRF. Em 2011, portanto, anos
após o início da municipalização do ITR, essa relação caiu para 0,062%. Ou
seja, na comparação entre os exercícios, a arrecadação do ITR sofreu
uma redução proporcional de 44%.
Os municípios, em especial, os menores, além de objeto dos
fortes controles das oligarquias rurais (que obviamente não morrem de amores
pela reforma agrária), não dispõem de estrutura e capacidade de gestão para
responderem adequadamente às suas próprias atribuições originárias. Além disso,
muitos desses municípios acham-se impedidos de receber verbas do governo
federal, no caso, em função de problemas com convênios, passivos
previdenciários etc.
Na verdade, enquanto no caso do ITR o governo federal
visou se livrar de um imposto indesejável, neste outro, junto com as demais
medidas divulgadas pela imprensa, é possível que ele – o governo – vise se
livrar de uma instituição indesejável: o Incra. Em entrevista
anterior à IHU On-Line comentei sobre as severas dificuldades de
gestão da autarquia.
IHU On-Line – O Incra está transferindo
para outras instituições públicas as tarefas de construir casas e levar água e
energia elétrica às famílias assentadas, assim como irá transferir a seleção
das famílias a serem beneficiadas pelo programa de reforma agrária. O que isso
sinaliza em relação ao futuro da instituição?
Gerson Teixeira – Esta questão está relacionada à anterior
obedecendo à mesma lógica. Igualmente, a transferência dessas ações não visa um
esforço de complementariedade institucional para dar musculatura ao processo de
reforma agrária e, sim, os propósitos desestruturantes do conjunto da obra. O
que se ouve é que muitas atribuições do Incra serão transferidas para
o MDS (e operadas por várias instituições), posto que na concepção
reducionista adotada de reforma agrária esta passaria a integrar o
programa Brasil Sem Miséria. Óbvio que esse programa é relevante na
perspectiva da mitigação da miséria, mas não ataca as causas da pobreza. E
agora, ao enquadrar a reforma agrária nesses limites, o governo neutraliza uma
das principais reformas capazes de romper com as causas estruturais da pobreza
e das desigualdades em geral no Brasil.
IHU On-Line – Pode-se dizer que mudou o
foco de ação do Incra? Em que sentido?
Gerson Teixeira – Há muito tempo o Incra sofre processo de
esvaziamento, o que tem sido consequência natural da condição periférica da
reforma agrária na agenda do país. Nos últimos anos, mais notadamente a partir
do programa governamental Terra Legal, que passou a legitimar áreas
públicas ocupadas na Amazônia, vem sendo tentada uma transição institucional
que projeta as ações de regularização fundiária como o núcleo da missão do
Incra. Creio que, confirmadas as medidas setoriais divulgadas recentemente pela
imprensa, a tendência será a de consolidação desse processo.
IHU On-Line – Pode explicar? Quais as
posições políticas que favoreceram esse esvaziamento?
Gerson Teixeira – Façamos uma rápida recuperação da
política agrária nos anos recentes e das suas tendências atuais e, subjacente,
teremos ideia sobre o destino do Incra. Inicio com um episódio político no PT,
do qual tive participação.
Após o Encontro Nacional do Partido, de 2000, em Recife/Olinda,
e até parte de 2002, a Secretaria Agrária Nacional do PT esteve com
uma coordenação da qual fiz parte. Nesse período, com a intensa participação
das entidades de trabalhadores rurais, elaboramos e submetemos ao Partido uma
proposta de programa de governo Lula para a agricultura e a reforma
agrária. Previa avanços importantes para a reforma agrária, no plano
institucional, de modo a estimular as lutas sociais que experimentavam momento
de vigor. Em que pese os avanços pretendidos, a proposta de programa de governo
estava calibrada para o contexto da adversidade da correlação de forças para
evitar maiores problemas ao governo junto dos setores conservadores. Um
processo político interno “tratorou” a proposta, e naquele momento já foi
possível antecipar o futuro da “reforma agrária”. Prevaleceu o
documento Vida Digna no Campo cujo texto foi um filtro minimalista da
proposta da Secretaria Agrária.
Assim, por razões que não vem ao caso no momento, de 2003 a 2010
o programa de reforma agrária, ou melhor: a política de assentamentos reativa
aos conflitos, teve desempenho muito aquém até daquele previsto no Vida
Digna. Renunciou-se à política para impedir qualquer movimento sobre temas
sensíveis aos ruralistas. Isto ocorreu por temor infundado de riscos para a
base do governo no intuito de evitar qualquer sinal que pudesse ser
interpretado como intimidatório ao avanço do agronegócio que praticamente se
constitua no único setor superavitário na balança comercial do país. Resultado:
o agronegócio ampliou a sua hegemonia; as lutas sociais entraram em declínio, o
que foi facilitado pelas ações de mitigação da pobreza. Foi integralmente
mantido o aparato legal restritivo da democratização da terra.
A Secretaria Agrária Nacional foi ‘fechada’ e o comando
do Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA entregue à
corrente e quadros do PT sem qualquer tradição e acúmulo nessa temática. Para
“compensar”, foi implementada importante política de inclusão da agricultura
familiar nos instrumentos de fomento à produção, ainda que segundo estratégia
de nivelamento às condições produtivas da agricultura do agronegócio.
IHU On-Line – Como analisar essa fase da
política de assentamentos do período Lula com a anterior e com a do governo da
presidente Dilma?
Gerson Teixeira – No auge do neoliberalismo, o
governo FHC tentou emplacar a reforma agrária de mercado, obviamente
defendida pelos conservadores. Mas os movimentos sociais impediram que os
instrumentos de compra e venda de terra viessem a prevalecer, e a intensidade
das lutas obrigou o governo a obter terras e a executar projetos de
assentamentos. Mas tudo em clima de permanente tensão política para intimidar
as lutas e preservar os interesses do latifúndio.
A partir de 2003 até 2010, o boom dos preços internacionais
das commodities agrícolas elevou
a hegemonia do agronegócio, no Brasil, para níveis tendencialmente absolutos.
isso foi facilitado pelo importante recuo das lutas pela terra, fato
curiosamente determinado pelas relações históricas dos movimentos com o PT e
com o presidente Lula, e pelos efeitos das políticas sociais.
Com FHC tivemos “muito pau e pouca prosa” e os limites
da política de assentamentos decorriam, ainda, do poder do latifúndio. O
período Lula foi marcado por “muita prosa e pouco pau”, e o
desempenho da política de assentamentos foi limitado pelo poder do agronegócio.
A trajetória dessa “evolução” nos levou ao presente estágio onde
parece que a política agrária não decorre mais de um produto do esforço
político do governo para a contenção de conflitos sociais em proteção do
latifúndio, ou para não criar empecilhos ao agronegócio. Ao que parece, na
atualidade, onde temos “pouco pau e nenhuma prosa”, chegamos a um estágio em
que a política agrária e a política ambiental passam a ser instrumentais à
expansão do agronegócio. Perdeu o caráter de administração de conflitos e se
transforma em instrumento do próprio agronegócio.
IHU On-Line – Pode explicar?
Gerson Teixeira – Considerando o tema agrário, é o que
projeta a proposta de emancipação à força de assentamentos abandonados à
própria sorte pelos poderes públicos, com a titulação dos respectivos lotes que
envolvem milhões de hectares. Sugerida pela entidade máxima
do agronegócio, a CNA, a proposta objetiva as condições para a
transferência, para o mercado (agronegócio), dos milhões de hectares desses
camponeses, o que reproduz as investidas dos ruralistas pela subtração dos
territórios indígenas, quilombolas e das áreas protegidas em geral.
Da mesma forma, visa-se a garantia jurídica para a expansão do
agronegócio na Amazônia com a proposta de legitimação, pelo Estado, das grandes
áreas públicas “privatizadas (griladas) na marra” naquela região. Nesse caso,
persegue-se uma versão ampliada e ainda mais flexível do programa Terra
Legal. Isso seria feito mediante a regularização “de ofício” dos imóveis
localizados às margens das rodovias federais na Amazônia. Pelas recomendações
da CNA, o governo deverá, ainda, proceder à ratificação dos títulos das
propriedades localizadas nas faixas de fronteiras, irregularmente feita pelos
estados, e à simplificação do georreferenciamento dos imóveis.
Portanto, é essa a política agrária que aparentemente se
estrutura não mais para administrar conflitos sociais tidos como intimidatórios
aos interesses do agronegócio, e sim para o atendimento direto dos interesses
da sua expansão.
Em suma, creio que a sedução e a rendição política aos quase 100
bilhões de dólares em exportações geradas pelo agronegócio poderão levar o
Brasil a cenários sombrios de um “abismo agrário-ambiental” já em curso. É
inacreditável que não se perceba nenhuma área dentro do governo pensando em
longo prazo e em estratégias, de fato, compatíveis com os interesses do Brasil.
Quanto ao Incra, trata-se um mero instrumento dessa política. E quem ouviu
ou leu o discurso surrado de que importa doravante a qualidade dos
assentamentos, sugiro que adote a recomendação da presidenta Dilma em
relação aos discursos de que os raios são as causas dos apagões. Ria!
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