Ricardo Antunes
Quando a classe
trabalhadora inglesa, a partir do século XVIII, começou a lutar pelos diretos
do trabalho, como redução da jornada (que atingia 18 horas por dia), salários
dignos, intervalos para refeições, descanso semanal, férias, licença
maternidade, etc, as crianças e adolescentes trabalhavam diuturnamente, sem
intervalos, ao sabor dos proprietários. Pude constatar, no acervo do museu da
maquinaria industrial inglesa, chamado Quarry Bank Mill, em Manchester, os
caixotes minúsculos onde dormiam as crianças-operárias exploradas pela
Revolução Industrial nascente, no gélido frio do norte da Inglaterra.
Em plena expansão
do mundo maquínico e sua lógica produtivista, o legítimo ingresso das mulheres
nas fábricas teve como “contrapartida” patronal a redução do salário da
totalidade dos assalariados, homens, mulheres e crianças. E, a cada avanço em
seus direitos, a grita patronal aumentava. Era como se o capitalismo fosse
acabar, e ele mal estava começando...
Se a história é
singular em suas distintas épocas, há algo de similar ocorrendo no Brasil do
século 21, após a ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas. Nossa
origem escravista e patriarcal, concebida a partir da casa grande e da senzala,
soube amoldar-se ao avanço das cidades. A modernização conservadora deu
longevidade ao servilismo da casa grande para as famílias citadinas. As classes
dominantes sempre exigiram as vantagens do urbanismo com as benesses do
servilismo, com um séquito de cozinheiras, faxineiras, motoristas, babás,
governantas e, mais recentemente, personal trainers para manter a forma, valets
nos restaurantes para estacionar os carros, etc.
Como o
assalariamento industrial excluiu a força de trabalho negra das fábricas
(preterida em favor dos imigrantes brancos), formou-se um bolsão excedente de
trabalho ex-escravo que encontrou acolhida no trabalho doméstico. E, como um
prolongamento da família senhorial, manteve-se as vantagens da era serviçal.
Agora, os “de cima”, para recordar Florestan Fernandes, estão novamente
alvoroçados com a ampliação de direitos dos “de baixo”. Algo lhes incomoda
neste avanço plebeu.
Com as classes
médias o quiproquó é maior: os seus estratos mais tradicionais e conservadores
agem quase como um espelhamento deformado das classes proprietárias e vociferam
a “revolta da sala de jantar”: não será estranho se começarem a defender o
direito das trabalhadoras domésticas não terem os direitos ampliados. E sua
bandeira principal já está indicada: são contrárias à ampliação dos direitos
das trabalhadoras domésticas para lhes evitar o desemprego.
Nos núcleos mais
intelectualizados e democráticos das classes médias, há o sentimento de que uma
chaga está sendo reduzida. Percebem a justeza destes direitos sociais validos para
o conjunto da classe trabalhadora, ainda que sua conquista altere
significativamente seu modo de vida. Mais próxima (ou menos distante) do
cenário dos países do Norte, tende a recorrer cada vez mais ao trabalho
doméstico diarista em substituição ao mensalista.
E isso aproxima
setores da classe média ao home office, com suas conhecidas vantagens
(flexibilidade do uso do tempo e sem perder horas no trânsito para o emprego) e
múltiplas desvantagens (como a proximidade com a terceirização e a
informalidade, o fim da separação entre espaço público e privado e o risco de
perda de controle do tempo, entre outras). E pode incentivar especialmente as
mulheres ainda mais em busca de trabalho em meio período, o que, se possibilita
maior proximidade com os filhos, pode ampliar ainda mais a desigual divisão
sexual do trabalho na esfera reprodutiva.
Para as
trabalhadoras domésticas, entretanto, a ampliação e igualdade de direitos tem o
significado de uma primeira abolição. O risco de maior desemprego é claramente
falacioso: primeiro porque faz tempo que elas procuram melhores qualificações
para migrar para novos empregos, especialmente no comércio e serviços. É por
isso que a redução da oferta de trabalhadoras domésticas vem se reduzindo a
cada ano. Ao contrário, portanto, do propalado “desemprego inevitável”, a
ampliação de direitos poderá até mesmo ampliar a oferta de trabalho. Uma
parcela destas trabalhadoras pensará duas vezes se compensa recorrer ao call
center e telemarketing, onde a burla e a informalidade também não são
exceções.
Combater a
informalidade que atinge mais de 70% desse contingente (dos quais mais de 90%
são mulheres e mais de 60% negras) será uma bandeira decisiva dos sindicatos
das trabalhadoras domésticas que devem avançar sua organização e aumentar sua
força buscando a regulamentação efetiva dos direitos. E esta sim, será uma
consequência importante da ampliação de direitos, que tanto incomoda aos
conservadores.
*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho na unicamp
e autor, entre outros, de os sentidos do trabalho (almedina, coimbra). Seu novo
livro, riqueza e miséria do trabalho no brasil, vol. Ii (boitempo), está no
prelo
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